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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA

Ao assumir hoje, o novo presidente deve alinhar-se ao Brasil em projeto de união da América do Sul

Posse de Kirchner alenta idéia de integração

Dario Lopez-Mills - 19.mai.2003/Associated Press
O presidente eleito da Argentina, Néstor Kirchner, saúda seus simpatizantes em Río Gallegos, na Província de Santa Cruz


CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A partir do momento em que Néstor Carlos Kirchner, 53, vestir hoje a faixa celeste e branca de presidente da Argentina, os dois principais países da América do Sul (o Brasil e a própria Argentina) mergulham em um novo esforço para transformar a parte sul das Américas em um bloco integrado política e economicamente.
Não por acaso, a idéia de uma Alcsa (Área de Livre Comércio Sul-Americana), em vez de uma Alca (que englobaria todas as três Américas mais o Caribe), foi lançada na gestão Itamar Franco, quando o chanceler se chamava Celso Amorim, o mesmo que hoje comanda a diplomacia brasileira.
Já no discurso de posse, Luiz Inácio Lula da Silva dizia: "A grande prioridade da política externa durante o meu governo será a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social".
Se a Alcsa jamais alçou vôo, por que imaginar que, agora, será diferente? As dificuldades permanecem imensas, o que justifica ceticismo, mas é diferente o contexto em que se dará a nova tentativa de transformar a América do Sul em um conglomerado mais coeso e, por extensão, com voz mais forte internacionalmente.
Nos dez longos anos de reinado de Carlos Menem na Argentina, encerrados em 1999, a prioridade não era a América do Sul, mas a América do Norte.
Sem que Brasil e Argentina olhem na mesma direção, é impraticável imaginar qualquer iniciativa regional sólida. Agora, ao discurso de Lula soma-se o de Kirchner, que deixou claro, na sua recente visita ao Brasil, que quer um Mercosul mais forte.
Não só como bloco comercial, mas como "espaço de integração política e econômica", exatamente para dar ao bloco "uma voz muito forte e clara ante o mundo". E tanto o governo Lula quanto os principais assessores diplomáticos de Kirchner já deixaram claro que a Alca não é prioritária.
A mudança de contexto se dá também no cenário econômico. O Mercosul, nos dez anos mais recentes, andou de crise em crise, primeiro porque a diferença de política cambial inviabilizava uma aproximação mais firme.
A Argentina, entre 1991 e 2001, usava o câmbio fixo, quase uma dolarização, ao passo que o Brasil deixou o real flutuar a partir de 1999. As crises internas nos dois sócios principais do Mercosul levaram a vários atritos, parte dos quais continua sobre a mesa.
Mas, agora, há uma disposição, ao menos retórica, para usar a crise como fonte de aproximação e ajuda mútua, em vez de tentar aliviá-la punindo o parceiro.
Os dois presidentes usam linguagem parecida em relação ao modelo econômico que defendem, o da "produção e o da inclusão", como repete, uma e outra vez, Kirchner. Mas essa semelhança colide com a apreciação diferente que os agentes de mercado têm a respeito de ambos.
Um conselho não pedido por Kirchner e perpetrado pelo presidente da Fiat argentina, Cristiano Ratazzi, dá uma idéia da percepção diferente: "É importante que ele [Kirchner] entenda que tem de parecer o mais possível com Lula e o menos possível com Chávez" (presidente da Venezuela).
Isso significa que, se Kirchner seguir a linha que vem insinuando em suas entrevistas pós-eleição, de novo Brasil e Argentina terão caminhos diferentes.
Kirchner chegou a dizer que a Argentina não precisa do FMI para sair-se bem, enquanto o governo do PT brasileiro não faz nem diz nada que possa contrariar o FMI ou o mercado financeiro.
Kirchner antevê até posições conjuntas em matéria de dívida externa. Quando se sabe que sua proposta inicial é obter um prazo de 50 anos para o pagamento da dívida argentina (ora em moratória), já se antecipa a brecha enorme entre ele e o governo do PT, que se conformou com o pagamento nas condições que antes considerava uma espoliação.
Como a pressão do empresariado argentino e do FMI sobre Kirchner tende a se acentuar agora, o teste para o relançamento da integração sul-americana não vai demorar: Lula será solidário com seu novo amigo argentino ou preferirá lavar as mãos para que as balas disparadas contra Kirchner não ricocheteiem sobre Lula?

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