São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008

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Ruanda busca paz à sombra do genocídio

Catorze anos após matança de 1 milhão de ruandeses, governo promove harmonia entre etnias, mas ainda há genocidas foragidos

Referências a grupos étnicos foram abolidas e país vive crescimento econômico, mas atentado a memorial mostra que ainda há riscos

FÁBIO ZANINI
EM KIGALI (RUANDA)

Como grande parte da população de seu país, Theógene Nzabana foi apresentado ao genocídio de Ruanda em 7 de abril de 1994. Na véspera, a queda do avião que levava o presidente Juvenal Habyarimana servira de pretexto para o início de um morticínio que vitimaria 1 milhão de pessoas da etnia tutsi, além de moderados de sua rival histórica hutu, em apenas três meses.
Mas naquela tarde de abril, a extensão dos massacres ainda não estava desenhada. Prefeito da vila de Kanzenze, o pai de Theógene, Gaspar, um tutsi, foi chamado a resolver um impasse na pequena igreja de Ntarama, perdida entre bananais a 30 km da capital, Kigali.
"A igreja estava cercada por interahamwe [milícia hutu], e lá dentro havia centenas de tutsis", lembra Theógene, então com 7 anos, que acompanhou o pai na tentativa de mediação.
"Meu pai chegou dizendo que aquilo não precisaria acontecer, que não precisava haver terror. Mas ele acabou silenciado por um golpe de facão, e depois outro e outro. Eu fugi. Certamente acharam que não valia a pena me perseguir", diz ele. Sua irmã, que tinha nove anos, também acabaria assassinada.
Por toda parte em Ruanda, o esforço em superar a lembrança do genocídio esbarra em histórias parecidas e em ameaças concretas. Milhares de acusados pelos massacres já foram condenados, mas cerca de 20 mil ainda aguardam julgamento. Cerca de 60 mil genocidas confessos foram libertados, por falta de lugar nas cadeias.
Pequeno país da África central com uma das maiores densidades populacionais do continente, Ruanda há uma década cresce ao menos 5% ao ano. Em 2006, Kigali ganhou o primeiro shopping e, no início deste ano, uma bolsa de valores.
A capital é segura, de ruas bem pavimentadas e está coalhada de turistas, sobretudo norte-americanos, que vêm ver os gorilas que vivem nas florestas do norte do país. A pobreza ainda atinge 50% da população, mas há uma década eram 80%.
A ameaça de novos conflitos não foi erradicada, apesar do governo difundir que Ruanda é uma sociedade "pós-étnica".
No mês passado, uma granada lançada no memorial do genocídio em Kigali matou um policial. Cerca de 20 mil radicais hutus ainda se refugiam nas florestas do Congo e representam uma ameaça permanente. Há 13 "peixes grandes" que organizaram ou financiaram o genocídio foragidos do tribunal da ONU.
"As relações entre hutus e tutsis hoje são boas, há convivência pacífica e são comuns casamentos entre membros das duas etnias. Mas nós sabemos que existem matadores que pretendem terminar sua missão", diz Naphtal Ahishakiye, 33, diretor da Ibuka, ONG que representa 400 mil sobreviventes do genocídio.
Ele escapou porque seu pai decidiu esconder os cinco filhos em pontos diferentes da mata ao redor de Kibuye, no oeste do país, para aumentar as chances de ao menos um sobreviver. Ahishakiye passou dois meses numa floresta e um mês junto a um rio, sozinho. Foi o único a escapar.

Reconciliação
Antes da matança, os hutus eram 85% da população, e os tutsis 15% (o censo étnico agora foi banido). Os tutsis, em média mais altos e com nariz mais fino, teriam emigrado da Etiópia no século 16 e dominado comunidades hutus autóctones, segundo a teoria mais difundida.
No século 20, os tutsis foram escolhidos pelos colonizadores belgas para formarem uma elite entre os colonizados, o que gradualmente gerou ressentimento e deu origem à ideologia do "poder hutu". Antes do genocídio, houve massacres e exílio de tutsis nos anos 50 e 60.
Nos anos 80, os filhos dos exilados formaram um exército rebelde, liderado pelo general Paul Kagame, cuja invasão de Kigali em junho de 1994 pôs fim às mortes. Ele hoje preside o país com mão de ferro.
Sua prioridade é minimizar as diferenças étnicas e promover o sentimento nacional. Sob o manto do combate à "ideologia do genocídio", líderes oposicionistas são perseguidos, e jornalistas são silenciados.
Uma lei estabelecendo penas para quem promover o genocídio está no Parlamento, e o presidente terá carta branca para definir seus critérios. Professores têm de ter aulas de "civismo" dadas pelo governo.
O governo criou uma comissão nacional de reconciliação, cujo último relatório diz que "um clima de confiança e harmonia está crescendo entre os ruandeses". Referências à etnicidade em documentos, que ajudaram os genocidas a identificar as vítimas, foram abolidas.
Os laços de identificação étnica não sumiram entre a população, porém. Jean-Pierre Ntahomvukiye, um professor hutu, reclama que seu grupo é estigmatizado. "Eu nunca persegui nem matei ninguém. Nesse sentido, também me sinto uma vítima do genocídio."


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