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Ruanda busca paz à sombra do genocídio
Catorze anos após matança de 1 milhão de ruandeses, governo promove harmonia entre etnias, mas ainda há genocidas foragidos
Referências a grupos étnicos foram abolidas e país vive crescimento econômico, mas atentado a memorial mostra que ainda há riscos
FÁBIO ZANINI
EM KIGALI (RUANDA)
Como grande parte da população de seu país, Theógene
Nzabana foi apresentado ao genocídio de Ruanda em 7 de
abril de 1994. Na véspera, a
queda do avião que levava o
presidente Juvenal Habyarimana servira de pretexto para o
início de um morticínio que vitimaria 1 milhão de pessoas da
etnia tutsi, além de moderados
de sua rival histórica hutu, em
apenas três meses.
Mas naquela tarde de abril, a
extensão dos massacres ainda
não estava desenhada. Prefeito
da vila de Kanzenze, o pai de
Theógene, Gaspar, um tutsi, foi
chamado a resolver um impasse na pequena igreja de Ntarama, perdida entre bananais a
30 km da capital, Kigali.
"A igreja estava cercada por
interahamwe [milícia hutu], e
lá dentro havia centenas de tutsis", lembra Theógene, então
com 7 anos, que acompanhou o
pai na tentativa de mediação.
"Meu pai chegou dizendo
que aquilo não precisaria acontecer, que não precisava haver
terror. Mas ele acabou silenciado por um golpe de facão, e depois outro e outro. Eu fugi. Certamente acharam que não valia
a pena me perseguir", diz ele.
Sua irmã, que tinha nove anos,
também acabaria assassinada.
Por toda parte em Ruanda, o
esforço em superar a lembrança do genocídio esbarra em histórias parecidas e em ameaças
concretas. Milhares de acusados pelos massacres já foram
condenados, mas cerca de 20
mil ainda aguardam julgamento. Cerca de 60 mil genocidas
confessos foram libertados, por
falta de lugar nas cadeias.
Pequeno país da África central com uma das maiores densidades populacionais do continente, Ruanda há uma década
cresce ao menos 5% ao ano. Em
2006, Kigali ganhou o primeiro
shopping e, no início deste ano,
uma bolsa de valores.
A capital é segura, de ruas
bem pavimentadas e está coalhada de turistas, sobretudo
norte-americanos, que vêm ver
os gorilas que vivem nas florestas do norte do país. A pobreza
ainda atinge 50% da população,
mas há uma década eram 80%.
A ameaça de novos conflitos
não foi erradicada, apesar do
governo difundir que Ruanda é
uma sociedade "pós-étnica".
No mês passado, uma granada lançada no memorial do genocídio em Kigali matou um
policial. Cerca de 20 mil radicais hutus ainda se refugiam
nas florestas do Congo e representam uma ameaça permanente. Há 13 "peixes grandes"
que organizaram ou financiaram o genocídio foragidos do
tribunal da ONU.
"As relações entre hutus e
tutsis hoje são boas, há convivência pacífica e são comuns
casamentos entre membros
das duas etnias. Mas nós sabemos que existem matadores
que pretendem terminar sua
missão", diz Naphtal Ahishakiye, 33, diretor da Ibuka, ONG
que representa 400 mil sobreviventes do genocídio.
Ele escapou porque seu pai
decidiu esconder os cinco filhos em pontos diferentes da
mata ao redor de Kibuye, no
oeste do país, para aumentar as
chances de ao menos um sobreviver. Ahishakiye passou dois
meses numa floresta e um mês
junto a um rio, sozinho. Foi o
único a escapar.
Reconciliação
Antes da matança, os hutus
eram 85% da população, e os
tutsis 15% (o censo étnico agora
foi banido). Os tutsis, em média
mais altos e com nariz mais fino, teriam emigrado da Etiópia
no século 16 e dominado comunidades hutus autóctones, segundo a teoria mais difundida.
No século 20, os tutsis foram
escolhidos pelos colonizadores
belgas para formarem uma elite entre os colonizados, o que
gradualmente gerou ressentimento e deu origem à ideologia
do "poder hutu". Antes do genocídio, houve massacres e exílio de tutsis nos anos 50 e 60.
Nos anos 80, os filhos dos
exilados formaram um exército
rebelde, liderado pelo general
Paul Kagame, cuja invasão de
Kigali em junho de 1994 pôs
fim às mortes. Ele hoje preside
o país com mão de ferro.
Sua prioridade é minimizar
as diferenças étnicas e promover o sentimento nacional. Sob
o manto do combate à "ideologia do genocídio", líderes oposicionistas são perseguidos, e jornalistas são silenciados.
Uma lei estabelecendo penas
para quem promover o genocídio está no Parlamento, e o presidente terá carta branca para
definir seus critérios. Professores têm de ter aulas de "civismo" dadas pelo governo.
O governo criou uma comissão nacional de reconciliação,
cujo último relatório diz que
"um clima de confiança e harmonia está crescendo entre os
ruandeses". Referências à etnicidade em documentos, que
ajudaram os genocidas a identificar as vítimas, foram abolidas.
Os laços de identificação étnica não sumiram entre a população, porém. Jean-Pierre
Ntahomvukiye, um professor
hutu, reclama que seu grupo é
estigmatizado. "Eu nunca persegui nem matei ninguém. Nesse sentido, também me sinto
uma vítima do genocídio."
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