São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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REPRESSÃO

Oito times disputam torneio em Cabul no mesmo local em que o Taleban matava infratores

Futebol volta a estádio usado em execuções

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A CABUL

O Estádio Nacional de Cabul, que ganhou notoriedade mundial durante o regime do Taleban por virar um palco de execuções públicas, vai sediar a partir desta semana a primeira Copa Ahmed Shah Massoud.
O campeonato, batizado em homenagem ao líder assassinado da Aliança do Norte, vai reunir os oito times remanescentes da capital afegã -inclusive os prediletos Urdu, Ithad e Kabul Club. O vencedor será eleito a seleção do Afeganistão, pelo menos do Afeganistão da Aliança do Norte.
Mais importante do que a copa é seu sentido. O estádio, que nunca chegou a ser desativado como palco de competições e ainda guarda em sua frente os anéis olímpicos, está marcado na imagem de vários moradores de Cabul por sua função de "Coliseu da era Taleban".
Coliseu no pior sentido possível, porque nem tudo era sentimento de vingança nos dias de execução. ""Tinha vendedor de amendoim e de refrigerante e até um clima de festa", conta Mohamad Eqbal, que trabalhou para o Crescente Vermelho (versão islâmica da Cruz Vermelha) durante o regime do Taleban.
""Eu fui duas vezes e tenho vergonha. Mas tinha de ir, senão o mulá do meu bairro poderia achar estranho", afirma o agora desempregado Eqbal, 27.
Ele se refere ao fato de que os sacerdotes islâmicos é que anunciavam quando haveria execução, sempre após as tradicionais orações da hora do almoço das sextas-feiras muçulmanas.

"Show mesmo"
As execuções atraíam cerca de 500 pessoas ao estádio, que tem capacidade para cerca de 7.000 espectadores. Ou seja, nem todo mundo estava lá porque tinha alguma relação de vingança com o executado.
""Era show mesmo", lembra a apresentadora de rádio e TV Jamila Mujahid, 36, com a frieza de quem já viu muita barbaridade -ela conta histórias como a de quando viu uma pilha de corpos de mulheres com os seios arrancados num ataque do Taleban à comunidade hazara em 1997.
Não se sabem quantas pessoas foram mortas no estádio entre 1996 e 2001, mas os números ficam na casa dos 50, 60. ""Nos dois primeiros meses, matavam todas as sextas-feiras uma pessoa. Para dar exemplo, acho. Mas depois era só de vez em quando", disse Eqbal.
Mas o show, por assim dizer, não incluía apenas a pena de fuzilamento -aplicada para assassinos e traficantes de drogas. Em diversos pontos do campo e da quadra de basquete que fica atrás de um dos gols, ocorriam mutilações e chibatadas.
Aos ladrões, era reservado o tradicional corte da mão direita, aplicado em um golpe só pelo carrasco do Taleban. Aos salteadores de estradas, cortavam-se a mesma mão e o pé direito. Já as penas de até 50 chibatadas eram aplicadas a furtos e ao sexo praticado fora do casamento.

Apedrejamento
""Mas uma vez pegaram uma mulher fazendo sexo com um vizinho. E ela era casada. Isso lhe custou a vida, e pela primeira e única vez o Taleban autorizou o apedrejamento até a morte de alguém no estádio, em 1997", contou Eqbal.
Os crimes menores eram punidos "in loco". Polícia, juiz e executor eram personificados na figura sinistra das unidades repressoras do Ministério para Prevenção do Vício e Promoção da Virtude.
Seus agentes andavam em duplas. ""Sempre tinham os maiores turbantes e as maiores barbas, até para ser difícil de reconhecer", diz Sayed Murid.
Esse tradutor de 23 anos afirma nunca ter ido a uma execução, mas relata que uma vez levou uma chicotada no meio da rua porque sua barba foi considerada curta demais e, em 1998, teve de se explicar no ministério porque ouvia música americana em volume muito alto.
""Quando os integrantes do Taleban fugiram, fiquei tão feliz que liguei meu som o mais alto possível. E fui ao barbeiro", conta, rindo, em seu apartamento no bloco 120 do bairro Makrorian 2.
No toca-fitas portátil, Britney Spears divide espaço com uma espécie de dance music afegã gravada em Peshawar (Paquistão). Os vizinhos devem ter saudade do Taleban.

Paradeiro desconhecido
O que não se sabe é o destino dos ""agentes da virtude". O boato corrente é que os que não fugiram cortaram a barba e estão escondidos por um tempo, deixando a situação se estabilizar. Mas é difícil, neste momento, saber qual é a verdade.
O que se sabe é que a experiência das execuções e humilhações públicas praticadas pelo Taleban vai demorar a sair da memória coletiva afegã.
""Precisamos de muito, muito tempo para absorver o que aconteceu", afirma a jornalista Jamila, que durante o período do regime do Taleban publicou poemas clandestinos em Peshawar. ""Eu vivo nas montanhas, buscando uma chave perdida há muito tempo/A chave da liberdade das mulheres afegãs", escreveu Jamila, dois anos atrás.

Recomeço
Quem também tenta esquecer o passado é Habibhullah Bashir, 34. Como todo jogador de futebol em sua idade, está preocupado com a forma física, mantida em um campo de treinamento no Hindu Kush. Só que, como ídolos como Garrincha e Maradona, pensa sempre no recomeço, não no fim da carreira.
""Jogava, desde os 16 anos, no Urdu. Em 1992 e 1993, éramos o melhor time da cidade. Mas veio a guerra, o Taleban, e fui para o norte lutar", conta, com calça de guerrilheiro camuflada e botas que serão substituídas por chuteiras na semana que vem.
""Queria fazer um gol, nem que fosse de pênalti", afirma o meia-atacante de cabelos grisalhos, involuntariamente fazendo lembrar que os membros do Taleban também aplicavam a pena capital a suas vítimas na marca na grande área.
Bashir sonha, como todo jogador de futebol, em ser contratado por algum clube da Europa. Lembra Horan Rahimi, seu ídolo afegão que jogou na Holanda, mas não esconde a satisfação de falar com um brasileiro.
""Vocês serão campeões no ano que vem. E eu acho que Rivaldo é o melhor", conta o jogador, mostrando que oito anos de guerra junto à Aliança do Norte deformaram sua percepção do mundo futebolístico.


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