|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
REPRESSÃO
Oito times disputam torneio em Cabul no mesmo local em que o Taleban matava infratores
Futebol volta a estádio usado em execuções
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A CABUL
O Estádio Nacional de Cabul,
que ganhou notoriedade mundial
durante o regime do Taleban por
virar um palco de execuções públicas, vai sediar a partir desta semana a primeira Copa Ahmed
Shah Massoud.
O campeonato, batizado em homenagem ao líder assassinado da
Aliança do Norte, vai reunir os oito times remanescentes da capital
afegã -inclusive os prediletos
Urdu, Ithad e Kabul Club. O vencedor será eleito a seleção do Afeganistão, pelo menos do Afeganistão da Aliança do Norte.
Mais importante do que a copa
é seu sentido. O estádio, que nunca chegou a ser desativado como
palco de competições e ainda
guarda em sua frente os anéis
olímpicos, está marcado na imagem de vários moradores de Cabul por sua função de "Coliseu da
era Taleban".
Coliseu no pior sentido possível, porque nem tudo era sentimento de vingança nos dias de
execução. ""Tinha vendedor de
amendoim e de refrigerante e até
um clima de festa", conta Mohamad Eqbal, que trabalhou para o
Crescente Vermelho (versão islâmica da Cruz Vermelha) durante
o regime do Taleban.
""Eu fui duas vezes e tenho vergonha. Mas tinha de ir, senão o
mulá do meu bairro poderia
achar estranho", afirma o agora
desempregado Eqbal, 27.
Ele se refere ao fato de que os sacerdotes islâmicos é que anunciavam quando haveria execução,
sempre após as tradicionais orações da hora do almoço das sextas-feiras muçulmanas.
"Show mesmo"
As execuções atraíam cerca de
500 pessoas ao estádio, que tem
capacidade para cerca de 7.000 espectadores. Ou seja, nem todo
mundo estava lá porque tinha alguma relação de vingança com o
executado.
""Era show mesmo", lembra a
apresentadora de rádio e TV Jamila Mujahid, 36, com a frieza de
quem já viu muita barbaridade
-ela conta histórias como a de
quando viu uma pilha de corpos
de mulheres com os seios arrancados num ataque do Taleban à
comunidade hazara em 1997.
Não se sabem quantas pessoas
foram mortas no estádio entre
1996 e 2001, mas os números ficam na casa dos 50, 60. ""Nos dois
primeiros meses, matavam todas
as sextas-feiras uma pessoa. Para
dar exemplo, acho. Mas depois
era só de vez em quando", disse
Eqbal.
Mas o show, por assim dizer,
não incluía apenas a pena de fuzilamento -aplicada para assassinos e traficantes de drogas. Em diversos pontos do campo e da quadra de basquete que fica atrás de
um dos gols, ocorriam mutilações
e chibatadas.
Aos ladrões, era reservado o tradicional corte da mão direita,
aplicado em um golpe só pelo carrasco do Taleban. Aos salteadores
de estradas, cortavam-se a mesma
mão e o pé direito. Já as penas de
até 50 chibatadas eram aplicadas a
furtos e ao sexo praticado fora do
casamento.
Apedrejamento
""Mas uma vez pegaram uma
mulher fazendo sexo com um vizinho. E ela era casada. Isso lhe
custou a vida, e pela primeira e
única vez o Taleban autorizou o
apedrejamento até a morte de alguém no estádio, em 1997", contou Eqbal.
Os crimes menores eram punidos "in loco". Polícia, juiz e executor eram personificados na figura
sinistra das unidades repressoras
do Ministério para Prevenção do
Vício e Promoção da Virtude.
Seus agentes andavam em duplas. ""Sempre tinham os maiores
turbantes e as maiores barbas, até
para ser difícil de reconhecer", diz
Sayed Murid.
Esse tradutor de 23 anos afirma
nunca ter ido a uma execução,
mas relata que uma vez levou
uma chicotada no meio da rua
porque sua barba foi considerada
curta demais e, em 1998, teve de se
explicar no ministério porque ouvia música americana em volume
muito alto.
""Quando os integrantes do Taleban fugiram, fiquei tão feliz que
liguei meu som o mais alto possível. E fui ao barbeiro", conta, rindo, em seu apartamento no bloco
120 do bairro Makrorian 2.
No toca-fitas portátil, Britney
Spears divide espaço com uma espécie de dance music afegã gravada em Peshawar (Paquistão). Os
vizinhos devem ter saudade do
Taleban.
Paradeiro desconhecido
O que não se sabe é o destino
dos ""agentes da virtude". O boato
corrente é que os que não fugiram
cortaram a barba e estão escondidos por um tempo, deixando a situação se estabilizar. Mas é difícil,
neste momento, saber qual é a
verdade.
O que se sabe é que a experiência das execuções e humilhações
públicas praticadas pelo Taleban
vai demorar a sair da memória
coletiva afegã.
""Precisamos de muito, muito
tempo para absorver o que aconteceu", afirma a jornalista Jamila,
que durante o período do regime
do Taleban publicou poemas
clandestinos em Peshawar. ""Eu
vivo nas montanhas, buscando
uma chave perdida há muito tempo/A chave da liberdade das mulheres afegãs", escreveu Jamila,
dois anos atrás.
Recomeço
Quem também tenta esquecer o
passado é Habibhullah Bashir, 34.
Como todo jogador de futebol em
sua idade, está preocupado com a
forma física, mantida em um
campo de treinamento no Hindu
Kush. Só que, como ídolos como
Garrincha e Maradona, pensa
sempre no recomeço, não no fim
da carreira.
""Jogava, desde os 16 anos, no
Urdu. Em 1992 e 1993, éramos o
melhor time da cidade. Mas veio a
guerra, o Taleban, e fui para o
norte lutar", conta, com calça de
guerrilheiro camuflada e botas
que serão substituídas por chuteiras na semana que vem.
""Queria fazer um gol, nem que
fosse de pênalti", afirma o meia-atacante de cabelos grisalhos, involuntariamente fazendo lembrar
que os membros do Taleban também aplicavam a pena capital a
suas vítimas na marca na grande
área.
Bashir sonha, como todo jogador de futebol, em ser contratado
por algum clube da Europa. Lembra Horan Rahimi, seu ídolo afegão que jogou na Holanda, mas
não esconde a satisfação de falar
com um brasileiro.
""Vocês serão campeões no ano
que vem. E eu acho que Rivaldo é
o melhor", conta o jogador, mostrando que oito anos de guerra
junto à Aliança do Norte deformaram sua percepção do mundo
futebolístico.
Texto Anterior: Curtas - Baixas: Líderes terroristas da Jihad morrem em bombardeio Próximo Texto: Hospitais reabrem as portas para mulheres Índice
|