São Paulo, quarta-feira, 26 de janeiro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Até 50 mil cristãos podem ter fugido para países vizinhos devido à perseguição que a minoria sofre no Iraque

Atentados provocam êxodo de cristãos

KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM BAGDÁ

O seqüestro de um dia do arcebispo católico em Mossul, Basile Georges Casmoussa, que dirige uma comunidade de mais de 35 mil fiéis na região, gerou um novo clima de insegurança entre os cristãos no Iraque.
O objetivo do seqüestro era desconhecido, mas estima-se que a ação faça parte dos atentados que estão sendo lançados há vários meses contra cristãos no Iraque, frutos de um plano de desestabilização que afeta especialmente a eles, ao lado dos xiitas.
A situação dos cristãos no Iraque é de grande vulnerabilidade, levando-se em conta que eles formam uma minoria de apenas 3% dos 26 milhões de iraquianos. Os atentados contra as igrejas de Mossul e Bagdá os estão obrigando ao êxodo. De acordo com cifras oficiais, os católicos iraquianos exilados já chegam a 15 mil.
Outros números fornecidos pela ministra dos Refugiados, Pascale Warda -que, por sinal, é a única católica do governo-, são menos animadores: já seriam mais de 50 mil cristãos que teriam se instalado em países vizinhos ao Iraque, especialmente a Síria.
O Iraque é visto como lar de algumas das comunidades religiosas mais antigas, incluindo os assírios, os caldeus, os católicos do rito oriental, que reconhecem a autoridade papal, e os mandaeus, membros de uma seita gnóstica que segue João Batista.

Ataques à "Zona Verde"
A Folha conversou com o padre Manuel Hernández Estévez, da comunidade dos Carmelitas Descalços. Ele é o único religioso católico espanhol no Iraque.
O convento no qual o padre vive, ao lado do superior da ordem e de outros cinco seminaristas, fica no bairro de Salijia, construído durante o governo de Saddam Hussein para os operários que trabalhavam em seus palácios. A igreja do convento, construída em homenagem a Santa Teresa, fica justamente na linha de fogo entre o bairro de Al Manzur e a chamada ""Zona Verde", sede da Embaixada dos EUA e do governo provisório do Iraque.
O medo dos ataques torna-se visível graças às barreiras que impedem o acesso de veículos nas quatro ruas que levam ao convento, especialmente na rua da entrada principal, que tem o mesmo nome do bairro. O nome significa ""lugar de pessoas boas".
O telhado da igreja está quebrado, devido às muitas explosões de carros-bomba nas redondezas. Isso obriga os religiosos a deixar as janelas abertas, para que os vidros não quebrem e voem como facas, ferindo pessoas. A igreja foi reconstruída depois da Guerra do Golfo (1991), mas, enquanto a guerra atual não chegar ao fim, seus responsáveis decidiram que ela terá de aguentar os ataques da maneira como está.
As granadas deixaram rombos grandes em seu belo jardim externo -o único lugar no Iraque onde já vi pardais, rouxinóis e pombas-, mas, por sorte, nunca chegaram a atingir seu interior.

Teimosia
O padre Manuel, espanhol nascido em 1940, não pensa em deixar a cidade, apesar dos pedidos da Espanha. ""Propus a meu superior vir ao Iraque quando o país estava em tumulto, pensando que eu poderia começar a recolher pobres, doentes, crianças e inválidos e encaminhá-los para algum centro. Depois me dei conta de que não poderia me deslocar. Passei toda minha vida em lugares perigosos", conta o padre com certa resignação, acrescentando, porém, que encontrou uma maneira de permanecer e ser útil. ""Vou me limitar a estar presente com as pessoas e dar o testemunho de que estou com elas, para o que der e vier. O perigo não irá desaparecer se eu for embora."
Diante dos riscos constantes e dos ataques coordenados contra as igrejas de Bagdá e Mossul, o padre Manuel e sua equipe chegaram, por um momento, a pensar em fechar a igreja, mas decidiram que não seria boa idéia. ""Foi pela simples razão de que não podemos obrigar os cristãos a permanecer em suas casas, sem o apoio da religião. Eles têm fé, e precisam do apoio de outras pessoas que sofrem a mesma coisa."

"A gente tem medo"
Enquanto os ataques se sucediam, no Natal passado, a comunidade dos carmelitas vivia no meio do perigo e da insegurança. Havia ameaças de que a igreja seria alvo de um atentado. Isso colocou os religiosos diante de um novo dilema: a quem pedir proteção? ""Se chamarmos os americanos, depois virão os terroristas nos buscar. Se você chama a polícia, entre ela há informantes dos terroristas", explica o padre. ""Você não pode chamar ninguém. Então o que fazemos? A gente tem medo, mas isso faz parte do que o povo sofre. Não tenho vergonha de sentir medo, porque compartilho o sentimento com o povo."
Esse medo o leva a viver quase confinado dentro do convento, não podendo sair nem mesmo para passear na calçada. É uma precaução muito válida: o arcebispo de Mossul foi sequestrado quando passeava em frente à igreja Al Bishara, no bairro de Muhandeseen, e foi forçado a entrar num veículo.
Os cristãos estão sendo vítimas de atentados e seqüestros, e os grupos fundamentalistas vêm atacando os proprietários cristãos de lojas de bebidas, música e moda, assim como de salões de beleza, tentando fazer com que fechem seus estabelecimentos. As mulheres cristãs são ameaçadas, a não ser que cubram suas cabeças à moda islâmica.
""Os que atacam os cristãos não são os muçulmanos", diz o padre Manuel. ""São os mesmos que atacam jornalistas, outros religiosos, pessoas comuns. São os que estão aí para matar. São terroristas de fora que não querem que haja estabilidade. Às vezes eles apresentam a questão como questão religiosa ou como colaboração na guerra, mas o verdadeiro objetivo é a desestabilização."


A argentina Karen Marón é co-diretora do Curso Internacional para Jornalistas em Zonas de Conflito e Missões de Paz; cobriu conflitos na Colômbia, no Peru, no Oriente Médio e em Chipre.

Tradução de Clara Allain


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