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IRAQUE SOB TUTELA
Até 50 mil cristãos podem ter fugido para países vizinhos devido à perseguição que a minoria sofre no Iraque
Atentados provocam êxodo de cristãos
KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM BAGDÁ
O seqüestro de um dia do arcebispo católico em Mossul, Basile
Georges Casmoussa, que dirige
uma comunidade de mais de 35
mil fiéis na região, gerou um novo
clima de insegurança entre os
cristãos no Iraque.
O objetivo do seqüestro era desconhecido, mas estima-se que a
ação faça parte dos atentados que
estão sendo lançados há vários
meses contra cristãos no Iraque,
frutos de um plano de desestabilização que afeta especialmente a
eles, ao lado dos xiitas.
A situação dos cristãos no Iraque é de grande vulnerabilidade,
levando-se em conta que eles formam uma minoria de apenas 3%
dos 26 milhões de iraquianos. Os
atentados contra as igrejas de
Mossul e Bagdá os estão obrigando ao êxodo. De acordo com cifras oficiais, os católicos iraquianos exilados já chegam a 15 mil.
Outros números fornecidos pela ministra dos Refugiados, Pascale Warda -que, por sinal, é a única católica do governo-, são menos animadores: já seriam mais
de 50 mil cristãos que teriam se
instalado em países vizinhos ao
Iraque, especialmente a Síria.
O Iraque é visto como lar de algumas das comunidades religiosas mais antigas, incluindo os assírios, os caldeus, os católicos do
rito oriental, que reconhecem a
autoridade papal, e os mandaeus,
membros de uma seita gnóstica
que segue João Batista.
Ataques à "Zona Verde"
A Folha conversou com o padre
Manuel Hernández Estévez, da
comunidade dos Carmelitas Descalços. Ele é o único religioso católico espanhol no Iraque.
O convento no qual o padre vive, ao lado do superior da ordem e
de outros cinco seminaristas, fica
no bairro de Salijia, construído
durante o governo de Saddam
Hussein para os operários que
trabalhavam em seus palácios. A
igreja do convento, construída em
homenagem a Santa Teresa, fica
justamente na linha de fogo entre
o bairro de Al Manzur e a chamada ""Zona Verde", sede da Embaixada dos EUA e do governo provisório do Iraque.
O medo dos ataques torna-se visível graças às barreiras que impedem o acesso de veículos nas quatro ruas que levam ao convento,
especialmente na rua da entrada
principal, que tem o mesmo nome do bairro. O nome significa
""lugar de pessoas boas".
O telhado da igreja está quebrado, devido às muitas explosões de
carros-bomba nas redondezas. Isso obriga os religiosos a deixar as
janelas abertas, para que os vidros
não quebrem e voem como facas,
ferindo pessoas. A igreja foi reconstruída depois da Guerra do
Golfo (1991), mas, enquanto a
guerra atual não chegar ao fim,
seus responsáveis decidiram que
ela terá de aguentar os ataques da
maneira como está.
As granadas deixaram rombos
grandes em seu belo jardim externo -o único lugar no Iraque onde já vi pardais, rouxinóis e pombas-, mas, por sorte, nunca chegaram a atingir seu interior.
Teimosia
O padre Manuel, espanhol nascido em 1940, não pensa em deixar a cidade, apesar dos pedidos
da Espanha. ""Propus a meu superior vir ao Iraque quando o país
estava em tumulto, pensando que
eu poderia começar a recolher pobres, doentes, crianças e inválidos
e encaminhá-los para algum centro. Depois me dei conta de que
não poderia me deslocar. Passei
toda minha vida em lugares perigosos", conta o padre com certa
resignação, acrescentando, porém, que encontrou uma maneira
de permanecer e ser útil. ""Vou me
limitar a estar presente com as
pessoas e dar o testemunho de
que estou com elas, para o que der
e vier. O perigo não irá desaparecer se eu for embora."
Diante dos riscos constantes e
dos ataques coordenados contra
as igrejas de Bagdá e Mossul, o padre Manuel e sua equipe chegaram, por um momento, a pensar
em fechar a igreja, mas decidiram
que não seria boa idéia. ""Foi pela
simples razão de que não podemos obrigar os cristãos a permanecer em suas casas, sem o apoio
da religião. Eles têm fé, e precisam
do apoio de outras pessoas que
sofrem a mesma coisa."
"A gente tem medo"
Enquanto os ataques se sucediam, no Natal passado, a comunidade dos carmelitas vivia no
meio do perigo e da insegurança.
Havia ameaças de que a igreja seria alvo de um atentado. Isso colocou os religiosos diante de um novo dilema: a quem pedir proteção? ""Se chamarmos os americanos, depois virão os terroristas
nos buscar. Se você chama a polícia, entre ela há informantes dos
terroristas", explica o padre. ""Você não pode chamar ninguém.
Então o que fazemos? A gente tem
medo, mas isso faz parte do que o
povo sofre. Não tenho vergonha
de sentir medo, porque compartilho o sentimento com o povo."
Esse medo o leva a viver quase
confinado dentro do convento,
não podendo sair nem mesmo
para passear na calçada. É uma
precaução muito válida: o arcebispo de Mossul foi sequestrado
quando passeava em frente à igreja Al Bishara, no bairro de Muhandeseen, e foi forçado a entrar
num veículo.
Os cristãos estão sendo vítimas
de atentados e seqüestros, e os
grupos fundamentalistas vêm
atacando os proprietários cristãos
de lojas de bebidas, música e moda, assim como de salões de beleza, tentando fazer com que fechem seus estabelecimentos. As
mulheres cristãs são ameaçadas, a
não ser que cubram suas cabeças
à moda islâmica.
""Os que atacam os cristãos não
são os muçulmanos", diz o padre
Manuel. ""São os mesmos que atacam jornalistas, outros religiosos,
pessoas comuns. São os que estão
aí para matar. São terroristas de
fora que não querem que haja estabilidade. Às vezes eles apresentam a questão como questão religiosa ou como colaboração na
guerra, mas o verdadeiro objetivo
é a desestabilização."
A argentina Karen Marón é co-diretora
do Curso Internacional para Jornalistas
em Zonas de Conflito e Missões de Paz;
cobriu conflitos na Colômbia, no Peru, no
Oriente Médio e em Chipre.
Tradução de Clara Allain
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