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ARTIGO
Epidemia e censura: perigosa combinação
MOACYR SCLIAR
Entre as muitas coisas que
emergem neste nosso mundo
de emergentes estão as novas enfermidades: a doença dos legionários, a doença pelo vírus Ebola, a
Aids, a infecção pelo hantavirus, a
hepatite C, e, agora, a síndrome
respiratória aguda grave, Sars,
uma doença viral de transmissão
respiratória com uma letalidade
relativamente alta e capaz de se
disseminar pelo planeta.
Como ocorreu com outras viroses que passam de animais para
os seres humanos, a presente epidemia teve origem na China. E isso representa um duplo problema. Em primeiro lugar, a enorme
população em risco. Em segundo
lugar, a política do governo chinês
em relação ao assunto.
Epidemias são embaraçosas para governos. E causam grandes
dificuldades. No final do século 19
o Brasil não podia exportar seu
principal produto, o café, porque
os navios estrangeiros aqui não
aportavam. E não aportavam por
causa das pestilências, sobretudo
a febre amarela. Contra a qual,
contudo, havia o que fazer: o
combate ao mosquito, objeto de
uma campanha desencadeada
por Oswaldo Cruz (que enfrentou
a oposição de muitos médicos).
Quando se trata de administrações autoritárias a situação é diferente. Em 1974 o Brasil viu-se às
voltas com uma epidemia de meningite meningocócica que, nos
primeiros momentos, semeou o
pânico. Notícias a respeito foram
censuradas, o que só resultou em
boatos, em desorientação e em
mais pânico.
Na China, uma lei de 1996 classifica doenças altamente infecciosas como segredo de Estado.
Quando surgiram os primeiros
casos, na província de Guangdong, o Departamento de Saúde
da área recebeu do governo central mensagem a respeito. Como
tal mensagem vinha com o rótulo
de "altamente confidencial", ninguém pôde abri-la nem tomar
providências.
A isso, acrescenta o "Washington Post", seguiram-se as férias
do Ano Novo chinês e, sobretudo,
a posse de uma nova direção do
Partido Comunista, caracterizando um período de transição no
qual notícias da epidemia seriam
"desestabilizadoras". Felizmente
um alerta aos jornalistas partiu do
respeitado médico Jiang Yaniong,
antigo diretor de um hospital que
trata sumidades como o premiê
Deng Xiaoping, que escreveu a
respeito a jornalistas. O próprio
Comitê Político do Partido exigiu
um "relato honesto" da situação,
e aí as providências começaram a
ser adotadas, com um atraso que,
segundo a OMS, pode ter sido
bastante deletério.
Conclusão: em matéria de epidemias, como de resto em tudo
que interessa ao público, o segredo pode não apenas ser contraproducente, como perigoso. As
pessoas têm o direito, e o dever,
de se proteger. As pernas curtas
da mentira, neste caso, conduzem, e com rapidez paradoxal, ao
desastre.
Moacyr Scliar, escritor e médico especializado em saúde pública, é autor, entre outros, de "A Paixão Transformada -História da Medicina na Literatura" (Companhia das Letras)
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