São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2006

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"O povo não está com o governo", afirma aiatolá

Principal clérigo dissidente iraniano diz à Folha que governo afasta jovens do islã

Hussein Ali Montazeri, 84, um dos seis grão-aiatolás do país, foi o braço direito de Khomeini, pai da Revolução Islâmica do Irã, de 1979

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A QOM (IRÃ)

Pouco antes de morrer, Ruhollah Khomeini, pai da Revolução Islâmica do Irã (1979), chamou seu braço direito e avisou que ele seria seu sucessor como líder supremo. É claro que a candidatura do grão-aiatolá Hussein Ali Montazeri passaria pela Assembléia dos Especialistas, que apenas referendaria a decisão, segundo o intricado organograma que regula a relação entre Estado e religião no país, aliás desenhado pelo próprio vice-líder. Mas a perspectiva do poder não calou Montazeri, que mais de uma vez disse que se preocupava com os rumos que a revolução tomava em relação aos direitos individuais, à política econômica e às relações exteriores. Em 1988, um ano antes de morrer, Khomeini o denunciou numa carta. Com o rompimento público, Ali Khamenei acabou sendo escolhido como grande líder, cargo vitalício que é o mais alto da hierarquia religiosa e de governo. Mesmo assim, Montazeri continuou falando. Por suas críticas a Khamenei, cumpriu prisão domiciliar, de 1997 a 2003. Hoje, aos 84 anos, com a saúde debilitada, o mais importante clérigo dissidente iraniano vive em Qom, centro religioso do país, uma hora de carro ao sul de Teerã. Um dos seis grão-aiatolás do Irã e dos menos de 20 do mundo, o xiita aceitou receber a Folha para "uma conversa informal". Cercado de mulás e "saths" (estudantes de religião), com um microfone ligado a um gravador, Montazeri começa reclamando de sua saúde. "Aos 84 anos, a idade só traz problemas", diz. "Mas estou respirando, graças a Deus." Faz a diatribe regulamentar contra os Estados Unidos e logo está criticando o governo iraniano. A conversa informal vira a entrevista abaixo.  

FOLHA - Qual é a sua opinião sobre o Irã neste momento?
HUSSEIN ALI MONTAZERI
- As pessoas estão perdendo a humanidade. Estão deixando de reconhecer que existe um Deus, a morte e a vida após a morte. Isso é fato, assim como é fato que todos vamos morrer, mesmo os mais importantes, mesmo os presidentes. A espiritualidade está diminuindo no mundo, especialmente entre os governantes. Os homens do poder, antes de assumir, prometem todo o tipo de coisa boa para todas as pessoas, depois parecem esquecer tudo.

FOLHA - A impressão que os ocidentais têm do Irã é a de um país fechado, comandado por extremistas religiosos, que amedrontam o povo. É correta?
MONTAZERI
- É correta?

FOLHA - O que o sr. acha?
MONTAZERI
- Os iranianos também têm uma imagem errada dos estrangeiros. As pessoas não deveriam julgar os países sem antes estudá-los. No Irã, não importa onde, há pessoas boas e pessoas ruins. No governo, há pessoas realmente boas, que se preocupam com o povo, mas outras, não. Os homens no poder não deveriam fazer maldades contra o povo. Eles não deveriam se aproveitar do povo porque estão no poder. No exterior é o mesmo. Há muitos anos, quando sofríamos com os soviéticos e os britânicos, pensávamos que os Estados Unidos seriam nosso anjo salvador. Tínhamos boa impressão deles. Quando chegaram, vimos que eram iguais aos outros. Como eles se dão o direito de atacar o Iraque e o Afeganistão e ameaçar o Irã? Os dias em que os países atacavam uns aos outros passaram. Hoje, as pessoas sabem que esse tipo de atitude não tem mais lugar no mundo. De alguma maneira, todos os países têm alguma má lembrança relacionada aos Estados Unidos. Quando o presidente norte-americano visita o exterior, há sempre uma demonstração pública de ódio. O prestígio do país diminuiu.

FOLHA - O programa nuclear iraniano é o mais novo foco de crise na região. O sr. o apoia?
MONTAZERI
- Hoje eu vi na TV Bush dizer que eles devem aumentar o número de instalações nucleares em seu país porque o petróleo vai acabar e eles não podem ser dependentes de outros. Eu pergunto: qual a diferença entre os Estados Unidos e o Irã? Por que não podemos ter um programa pacífico de energia, e os Estados Unidos podem ter tudo o que querem? Por que Israel pode ter armas nucleares, e o Irã não pode ter energia nuclear pacífica?

FOLHA - E se não for pacífica?
MONTAZERI
- Não aprovo o uso de armas atômicas. Estados Unidos e Irã deveriam se acalmar e sentar-se à mesa. Se a questão é proibir armas nucleares, eles podem mandar fiscais para cá, mas simplesmente proibir a energia para fins pacíficos é ilógico.

FOLHA - Os jovens iranianos não parecem mais tão preocupados em seguir o islamismo. A sociedade tem de ser adaptar à lei islâmica ou o contrário?
MONTAZERI - O Corão diz: "Não se pode forçar o islamismo". O problema é que os jovens iranianos têm muitas expectativas em relação ao governo, mas não vêem resultados, e o governo não faz o que prometeu. Então, agora, o povo não está mais com o governo. Precisamos de trabalho cultural, e é preciso que esse governo mude de atitude, para se aproximar do povo e parecer mais confiável aos jovens. O governo não deveria tomar atitudes que fazem o povo odiar o islamismo. O mais importante é a atitude do governo, que não deveria afastar as pessoas do islã, como vem fazendo.

FOLHA - Segundo o jornal "The Washington Post", o presidente Ahmadinejad disse que o 12º imã voltará em dois anos (segundo a tradição islâmica, o fim do mundo será marcado pela volta do 12º e último imã).
MONTAZERI
- Ele está enganado. Disse algo sem pensar quando falou isso. Sabemos pelos escritos históricos que ninguém pode marcar uma data para esse evento.

FOLHA - O aiatolá Khomeini disse que o sr. seria o seu sucessor. O Irã seria diferente hoje se esse desejo tivesse sido cumprido?
MONTAZERI
- Não foi só o imã que me escolheu, mas também o Conselho dos Especialistas. Mas eles mudaram de opinião, e hoje eu sou feliz por não ter esse tipo de obrigação. Não sei se faria diferente se estivesse no lugar deles (risos). O imã Ali (o primeiro dos 12) arrumava os furos de seus sapatos quando seu filho perguntou se o esforço valia a pena, já que ele era o líder do povo islâmico e tinha todo o poder. Ele respondeu: "Se eu não puder arrumar meus próprios sapatos, meu poder e liderança não valem nada". Se você tem uma obrigação mas não pode exercê-la, melhor esquecer. No meu caso, os sapatos são mais valiosos, porque pelo menos estão fazendo algo.

FOLHA - O islamismo pode conviver com a democracia?
MONTAZERI
- Sim. O islamismo é contra a força. Se há um governo que força as pessoas a fazer algo, não se pode chamá-lo de islâmico. Há que se fazer a diferença entre o islã e governos que cometem erros em seu nome.
Quando as pessoas são livres para escolher sua religião e fazer o que querem, o governo só deve coibir os crimes. Isso é democracia: liberdade de escolha do cidadão e capacidade do governo de coibir crimes.


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