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"O povo não está com o governo", afirma aiatolá
Principal clérigo dissidente iraniano diz à Folha que governo afasta jovens do islã
Hussein Ali Montazeri, 84, um dos seis grão-aiatolás do país, foi o braço direito de Khomeini, pai da Revolução Islâmica do Irã, de 1979
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A QOM (IRÃ)
Pouco antes de morrer, Ruhollah Khomeini, pai da Revolução Islâmica do Irã (1979),
chamou seu braço direito e avisou que ele seria seu sucessor
como líder supremo. É claro
que a candidatura do grão-aiatolá Hussein Ali Montazeri
passaria pela Assembléia dos
Especialistas, que apenas referendaria a decisão, segundo o
intricado organograma que regula a relação entre Estado e religião no país, aliás desenhado
pelo próprio vice-líder.
Mas a perspectiva do poder
não calou Montazeri, que mais
de uma vez disse que se preocupava com os rumos que a revolução tomava em relação aos
direitos individuais, à política
econômica e às relações exteriores.
Em 1988, um ano antes de
morrer, Khomeini o denunciou
numa carta. Com o rompimento público, Ali Khamenei acabou sendo escolhido como
grande líder, cargo vitalício que
é o mais alto da hierarquia religiosa e de governo.
Mesmo assim, Montazeri
continuou falando. Por suas
críticas a Khamenei, cumpriu
prisão domiciliar, de 1997 a
2003. Hoje, aos 84 anos, com a
saúde debilitada, o mais importante clérigo dissidente iraniano vive em Qom, centro religioso do país, uma hora de carro ao
sul de Teerã.
Um dos seis grão-aiatolás do
Irã e dos menos de 20 do mundo, o xiita aceitou receber a Folha para "uma conversa informal".
Cercado de mulás e "saths"
(estudantes de religião), com
um microfone ligado a um gravador, Montazeri começa reclamando de sua saúde. "Aos 84
anos, a idade só traz problemas", diz. "Mas estou respirando, graças a Deus." Faz a diatribe regulamentar contra os Estados Unidos e logo está criticando o governo iraniano. A
conversa informal vira a entrevista abaixo.
FOLHA - Qual é a sua opinião sobre
o Irã neste momento?
HUSSEIN ALI MONTAZERI - As pessoas estão perdendo a humanidade. Estão deixando de reconhecer que existe um Deus, a
morte e a vida após a morte. Isso é fato, assim como é fato que
todos vamos morrer, mesmo os
mais importantes, mesmo os
presidentes. A espiritualidade
está diminuindo no mundo, especialmente entre os governantes. Os homens do poder,
antes de assumir, prometem
todo o tipo de coisa boa para todas as pessoas, depois parecem
esquecer tudo.
FOLHA - A impressão que os ocidentais têm do Irã é a de um país fechado, comandado por extremistas
religiosos, que amedrontam o povo.
É correta?
MONTAZERI - É correta?
FOLHA - O que o sr. acha?
MONTAZERI - Os iranianos também têm uma imagem errada
dos estrangeiros. As pessoas
não deveriam julgar os países
sem antes estudá-los. No Irã,
não importa onde, há pessoas
boas e pessoas ruins. No governo, há pessoas realmente boas,
que se preocupam com o povo,
mas outras, não. Os homens no
poder não deveriam fazer maldades contra o povo. Eles não
deveriam se aproveitar do povo
porque estão no poder. No exterior é o mesmo.
Há muitos anos, quando sofríamos com os soviéticos e os
britânicos, pensávamos que os
Estados Unidos seriam nosso
anjo salvador. Tínhamos boa
impressão deles. Quando chegaram, vimos que eram iguais
aos outros. Como eles se dão o
direito de atacar o Iraque e o
Afeganistão e ameaçar o Irã?
Os dias em que os países atacavam uns aos outros passaram.
Hoje, as pessoas sabem que esse tipo de atitude não tem mais
lugar no mundo.
De alguma maneira, todos os
países têm alguma má lembrança relacionada aos Estados
Unidos. Quando o presidente
norte-americano visita o exterior, há sempre uma demonstração pública de ódio. O prestígio do país diminuiu.
FOLHA - O programa nuclear iraniano é o mais novo foco de crise na
região. O sr. o apoia?
MONTAZERI - Hoje eu vi na TV
Bush dizer que eles devem aumentar o número de instalações nucleares em seu país porque o petróleo vai acabar e eles
não podem ser dependentes de
outros.
Eu pergunto: qual a diferença
entre os Estados Unidos e o
Irã? Por que não podemos ter
um programa pacífico de energia, e os Estados Unidos podem
ter tudo o que querem? Por que
Israel pode ter armas nucleares, e o Irã não pode ter energia
nuclear pacífica?
FOLHA - E se não for pacífica?
MONTAZERI - Não aprovo o uso
de armas atômicas. Estados
Unidos e Irã deveriam se acalmar e sentar-se à mesa. Se a
questão é proibir armas nucleares, eles podem mandar fiscais
para cá, mas simplesmente
proibir a energia para fins pacíficos é ilógico.
FOLHA - Os jovens iranianos não
parecem mais tão preocupados em
seguir o islamismo. A sociedade tem
de ser adaptar à lei islâmica ou o
contrário?
MONTAZERI - O Corão diz: "Não
se pode forçar o islamismo". O
problema é que os jovens iranianos têm muitas expectativas em relação ao governo, mas
não vêem resultados, e o governo não faz o que prometeu. Então, agora, o povo não está mais
com o governo.
Precisamos de trabalho cultural, e é preciso que esse governo mude de atitude, para se
aproximar do povo e parecer
mais confiável aos jovens. O governo não deveria tomar atitudes que fazem o povo odiar o islamismo. O mais importante é
a atitude do governo, que não
deveria afastar as pessoas do islã, como vem fazendo.
FOLHA - Segundo o jornal "The
Washington Post", o presidente Ahmadinejad disse que o 12º imã voltará em dois anos (segundo a tradição islâmica, o fim do mundo será
marcado pela volta do 12º e último
imã).
MONTAZERI - Ele está enganado.
Disse algo sem pensar quando
falou isso. Sabemos pelos escritos históricos que ninguém pode marcar uma data para esse
evento.
FOLHA - O aiatolá Khomeini disse
que o sr. seria o seu sucessor. O Irã
seria diferente hoje se esse desejo tivesse sido cumprido?
MONTAZERI - Não foi só o imã
que me escolheu, mas também
o Conselho dos Especialistas.
Mas eles mudaram de opinião,
e hoje eu sou feliz por não ter
esse tipo de obrigação. Não sei
se faria diferente se estivesse
no lugar deles (risos).
O imã Ali (o primeiro dos 12)
arrumava os furos de seus sapatos quando seu filho perguntou
se o esforço valia a pena, já que
ele era o líder do povo islâmico
e tinha todo o poder. Ele respondeu: "Se eu não puder arrumar meus próprios sapatos,
meu poder e liderança não valem nada". Se você tem uma
obrigação mas não pode exercê-la, melhor esquecer. No meu
caso, os sapatos são mais valiosos, porque pelo menos estão
fazendo algo.
FOLHA - O islamismo pode conviver com a democracia?
MONTAZERI - Sim. O islamismo
é contra a força. Se há um governo que força as pessoas a fazer algo, não se pode chamá-lo
de islâmico. Há que se fazer a
diferença entre o islã e governos que cometem erros em seu
nome.
Quando as pessoas são livres
para escolher sua religião e fazer o que querem, o governo só
deve coibir os crimes. Isso é democracia: liberdade de escolha
do cidadão e capacidade do governo de coibir crimes.
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