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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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ARTIGO

Bolívia, o país que quer existir

EDUARDO GALEANO

Uma imensa explosão de gás: esse foi o levante popular que sacudiu toda a Bolívia e culminou com a renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que fugiu deixando atrás de si uma série de mortos. O gás seria enviado para a Califórnia, a preço ruim e em troca de pequenas regalias, por meio de terras chilenas que, em outros tempos, foram bolivianas. A saída do gás por um porto do Chile lançou sal à ferida, em um país que, há mais de um século, vem exigindo, em vão, a recuperação do caminho para o mar que perdeu em 1883, na guerra vencida pelo Chile.
Mas o caminho do gás não foi o motivo mais importante para a fúria quer ardeu por todas as partes. Outra fonte essencial teve a indignação popular, à qual o governo respondeu a tiros, como é de costume, regando com mortos as ruas e as estradas. As pessoas se revoltaram porque se negam a aceitar que aconteça com o gás o que já aconteceu com a prata, o salitre, o estanho e tudo o mais. A memória dói e ensina: os recursos naturais não-renováveis vão sem dizer adeus e jamais voltam.
 

Por volta de 1870, um diplomata britânico sofreu, na Bolívia, um desagradável incidente. O ditador Mariano Melgarejo ofereceu-lhe um copo de "chicha", a bebida nacional feita de milho fermentado. O diplomata agradeceu e disse que preferia chocolate. Melgarejo, com sua habitual delicadeza, o obrigou a beber uma enorme vasilha cheia de chocolate e depois o fez andar de burro, montado ao contrário, pelas ruas de La Paz. Quando a rainha Vitória, em Londres, soube do ocorrido, mandou trazer um mapa, riscou uma cruz a giz sobre o país e sentenciou: "A Bolívia não existe".
Várias vezes ouvi essa história. Terá ocorrido dessa maneira? Pode ser que sim, pode ser que não. Mas essa frase, atribuída à arrogância imperial, também pode ser lida como uma involuntária síntese da atormentada história do povo boliviano. A tragédia se repete, girando como um carrossel: há cinco séculos a fabulosa riqueza da Bolívia maldiz os bolivianos, que são os pobres mais pobres da América do Sul. "A Bolívia não existe": não existe para seus filhos.
 
Além da época colonial, a prata de Potosí foi, por mais de dois séculos, o principal alimento do desenvolvimento capitalista da Europa. "Vale um Potosí", se dizia, para elogiar o que não tinha preço. Em meados do século 16, a cidade mais povoada, mais cara e mais esbanjadora do mundo brotou e nasceu ao pé da montanha que emanava prata. Essa montanha, o chamado Cerro Rico, tragava índios. "Os caminhos estavam de tal modo apinhados que parecia mudança do reino", escreveu um rico mineiro de Potosí: as comunidades se esvaziavam de homens, que, de todas as partes, marchavam, prisioneiros, rumo à boca que levava às escavações. Fora, temperaturas de gelo. Dentro, o inferno. De cada dez que entravam, apenas três saíam vivos.
Mas os condenados à mina, que pouco duravam, geravam a fortuna dos banqueiros flamengos, genoveses e alemães, credores da coroa espanhola, e eram esses índios que tornavam possível o acúmulo de capitais que converteu a Europa no que a Europa é. O que restou na Bolívia, de tudo isso? Uma montanha oca, uma incontável quantidade de índios assassinados pelo cansaço e alguns palácios habitados por fantasmas.
 
No século 19, quando foi derrotada na chamada Guerra do Pacífico, a Bolívia não perdeu só sua saída para o mar e ficou encurralada no coração da América do Sul. Também perdeu seu salitre. A história oficial, que é a história militar, conta que o Chile ganhou essa guerra, mas a história real comprova que o vencedor foi o empresário britânico John Thomas North. Sem disparar um tiro nem gastar um penny, North conquistou territórios que haviam sido da Bolívia e do Peru e se converteu no rei do salitre, que, na época, era o fertilizante imprescindível para alimentar as cansadas terras da Europa.
 
No século 20, a Bolívia foi o principal fornecedor de estanho no mercado internacional. As embalagens de folha de flandres, que deram fama a Andy Warhol, provinham das minas que produziam estanho e viúvas. Na profundeza das escavações, o implacável pó de silício matava por asfixia. Os pulmões dos operários apodreciam para que o mundo pudesse consumir estanho barato.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a Bolívia contribuiu para a causa aliada vendendo seu mineral a um preço dez vezes menor do que o normal. Os salários dos operários se reduziram a nada, houve greves, as metralhadoras cuspiram fogo. Simón Patiño, dono do negócio e amo do país, não teve de pagar indenizações, pois a matança por metralha não é acidente de trabalho. Dom Simón pagava US$ 50 anuais de Imposto de Renda, mas pagava muito mais ao presidente da nação e a todo o seu gabinete.
Ele fora um morto de fome que acabou tocado pela varinha mágica da deusa Fortuna. Seus netos ingressaram na nobreza européia. Casaram-se com condes, marqueses e parentes de reis. Quando a revolução de 1952 destronou Patiño e nacionalizou o estanho, restava pouco mineral. Não mais do que os restos de meio século de desaforada exploração a serviço do mercado mundial.
 
Há mais de cem anos, o historiador Gabriel René Moreno descobriu que o povo boliviano era "geneticamente incapaz". Ele havia colocado na balança o cérebro indígena e o cérebro mestiço e havia comprovado que pesavam entre cinco, sete e dez onças menos do que o cérebro da raça branca. O tempo passou, e o país que não existe continua enfermo de racismo. Mas o país que quer existir, onde a maioria indígena não tem vergonha de ser o que é, não cospe no espelho.
Essa Bolívia, farta de viver em função do progresso alheio, é o país de verdade. Sua história ignorada abunda em derrotas e traições, mas também em milagres como os que são capazes de fazer os desprezados quando deixam de desprezar a si mesmos e quando deixam de lutar entre si. Fatos assombrosos, de muito brio, estão ocorrendo, sem ir mais longe, nestes tempos que correm.
 
Em 2000, um caso único no mundo: uma localidade "desprivatizou" a água. A chamada "guerra da água" ocorreu em Cochabamba. Os camponeses marcharam, saindo dos vales, e bloquearam a cidade, e também a cidade se rebelou. Respondendo com balas e gás lacrimogêneo, o governo decretou o estado de sítio. Mas a rebelião coletiva continuou, impossível de parar, até que, na investida final, a água foi arrancada das mãos da empresa Bechtel e as pessoas recuperaram a irrigação de seus corpos e de suas plantações.
(A Bechtel, com sede na Califórnia, agora recebe o consolo do presidente George W. Bush, que a presenteia com contratos milionários no Iraque).
Há alguns meses, outra explosão popular, em toda a Bolívia, venceu nada menos do que o Fundo Monetário Internacional. O Fundo vendeu caro sua derrota, cobrou 30 vidas -assassinadas pelas chamadas forças da ordem-, mas o povo realizou sua façanha. O governo não teve outra coisa a fazer a não ser anular o imposto sobre os salários, que o Fundo havia mandado aplicar.
Agora, é a guerra do gás. A Bolívia conta com enormes reservas de gás natural. Sánchez de Lozada chamara de capitalização a sua privatização mal dissimulada, mas o país que quer existir acaba de demonstrar que não tem memória ruim. Outra vez a velha história da riqueza que evapora em mãos alheias? "O gás é nosso direito", proclamavam os cartazes nas manifestações. As pessoas exigiam, e continuarão exigindo, que o gás seja colocado a serviço da Bolívia, em lugar de a Bolívia submeter-se, uma vez mais, à ditadura de seu subsolo. O direito à autodeterminação, que tanto se invoca e tão pouco se respeita, começa por aí.
A desobediência popular causou a perda de um negócio rentável à corporação Pacific LNG, integrada por Repsol, British Gas e Panamerican Gas, sócia da empresa Enron, famosa por seus virtuosos costumes.
Tudo indica que a corporação ficará na vontade, em lugar de ganhar, como esperava, US$ 10 para cada dólar investido.
Por sua vez, o fugitivo Sánchez de Lozada perdeu a Presidência. Seguramente, não perdeu o sono. Sobre sua consciência pesa o crime contra pelo menos 74 manifestantes, mas essa não foi sua primeira carnificina, e esse defensor da modernização não se preocupa com nada que não seja rentável. No fim de tudo, ele pensa e fala em inglês, mas não é o inglês de Shakespeare: é o inglês de Bush.


Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio, autor de "As Veias Abertas da América Latina" e "Memórias do Fogo"


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