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Alguns países islâmicos negam à mulher direitos básicos
Cidadãs de segunda classe
PAULA SCHMITT
FREE-LANCE PARA A FOLHA, NO CAIRO
As conquistas feministas no
mundo islâmico caminham a
passos lentos, lentíssimos até.
Mas caminham. As vitórias, contudo, são tão modestas que feministas no resto do mundo têm dificuldade para comemorar. As
mudanças mais recentes são um
bom exemplo do misto de sentimentos que provocam: alegria pela conquista e revolta ao notar que
certos direitos básicos vinham
sendo negados até então.
É o caso, por exemplo, do direito de ir e vir. No Egito, um país em
que as mulheres podem ser eleitas
deputadas e nomeadas ministras,
só agora elas podem comemorar
o direito de viajar sem precisar da
autorização de um homem
-marido, pai ou irmão. Tal lei
não vinha da época dos califas ou
do Alcorão. Surgiu de um decreto
de 1959, estipulando que a mulher
não poderia viajar sem permissão
do seu "guardião".
E, como se não fosse o bastante,
em 1996 um novo decreto foi ainda mais longe e decidiu que a mulher não poderia ter um passaporte sem que o marido o permitisse.
Ao menos oficialmente, tal lei tem
como intenção "proteger a mulher". O decreto foi editado durante o governo secular de Gamal
Abdel Nasser (1956-70) sob o pretexto de proteger as mulheres das
redes de prostituição.
A proibição não é inédita no
mundo islâmico. No Iêmen, no
Irã e na Arábia Saudita as mulheres também têm seus movimentos limitados. Mas em países como Jordânia, Tunísia, Marrocos e
mesmo Kuait, elas têm o direito
de ir e vir sem precisar da aprovação de um "responsável".
De acordo com Zeinab Radwan,
diretora da Faculdade de Estudos
Islâmicos na Universidade do
Cairo, o islã não permite que nenhum dos cônjuges force o outro
a aceitar algo que ele não queira.
O próprio xeque Mohammed
Tantawi, a maior autoridade do
islã sunita, apoiou as mudanças
na lei do status legal que dão à
mulher o direito de ir e vir.
Nacionalidade
Apesar da suposta boa intenção
de proteger as mulheres da prostituição, a lei não deixava de ser
mais uma maneira de manter a
autoridade do homem sobre a
mulher. É esse o caso de outra lei,
que, sob muitos protestos, continua em pleno vigor. Sob alegação
de estar protegendo a "soberania
nacional", o Egito nega às mulheres o direito de passar a nacionalidade egípcia aos filhos se o pai das
crianças for estrangeiro.
Aos homens, contudo, tal direito não é negado. É como se a legitimidade de um egípcio fosse avalizada somente pelo lado paterno.
Para os filhos de egípcias casadas
com estrangeiros, não existe escola pública gratuita nem universidade, hospital, direito a voto e
passaporte. São como turistas no
próprio país. O mesmo acontece
com filhos de prostitutas. Outros
países árabes, como o Kuait, têm
regras similares.
Divórcio
Mas, se algumas leis têm origem
na suposta "segurança nacional",
outras não se dão nem ao trabalho de alegar motivos mais nobres. Um bom exemplo é a lei -já
abolida no Egito-que forçava a
mulher a voltar para casa, se o
marido assim o quisesse, com a
ajuda da polícia.
Segundo a educadora Zeinab
Radwan, que também é vice-presidente do Conselho Nacional da
Mulher, a lei é erroneamente associada ao islã. "Parece quase criminoso", escreveu Radwan no
jornal semi-estatal "Al Ahram",
"que, quando confrontadas com
o Alcorão e a "Sunna" [dizeres e
práticas do profeta Muhammad",
muitas das restrições revelam-se
produtos de patriarcado espúrio."
O pior, diz ela, "é que ainda assim tais restrições são confundidas com o islã". Mas não é à toa.
São muçulmanos que interpretam o Alcorão e a "Sunna" e
transformam a prática em algo
muito mais restritivo que a teoria.
É esse o caso da lei do divórcio.
Não existe nada no Alcorão que
diga que o direito ao divórcio é exclusivo do homem. Ao contrário:
algumas passagens dizem claramente que o homem não deve
obrigar a mulher a fazer o que não
quer e deve "deixá-la ir com generosidade" e casar-se de novo
quando ela assim desejar.
Mas, na prática, os maridos no
Egito podem se divorciar de suas
mulheres sem a necessidade de
um juiz ou advogado. Basta dizer
três vezes "eu me divorcio de ti"
para que o homem no Egito e em
outros países árabes esteja legalmente divorciado.
Segundo Saad Edin Ibrahim, o
intelectual egípcio-americano
que está preso sob acusação de
que sua ONG recebeu doações de
entidades estrangeiras (no caso a
União Européia), "o verdadeiro
interesse dos homens que se
opõem à lei [do divórcio" é assegurar a dominação e a hegemonia
masculina sobre a mulher".
Obediência
Depois de pelo menos dez anos
de acirrado debate -e de alguns
casos em que as mulheres literalmente cortaram os maridos em
pedaços para se verem livres deles-, em janeiro de 2000 as mulheres conquistaram o direito ao
divórcio, ou melhor, ao "khula"
-as feministas fazem questão de
ressaltar a diferença.
No "khula" (pronuncia-se rula),
a mulher pode pedir a separação
mesmo que o marido não concorde, mas ela tem de devolver o
equivalente ao dote. Por conta
disso, muitas mulheres vão continuar presas aos maridos porque
não terem como pagar. O pior é
que as mulheres que requerem o
"khula" perdem automaticamente o direito à pensão alimentícia.
Para a feminista egípcia Nawal
Saadawi, tal caso serve para confirmar o que ela acredita ser o fundamento do código matrimonial
islâmico: obediência em troca de
sustento material. O "khula",
acreditam Saadawi e outras feministas, é um divorcio capenga,
que só pode ser requerido por
mulheres ricas. Às pobres sobram
duas opções: manter o casamento
infeliz ou ficar na miséria.
Sharia
As conquistas das mulheres no
mundo islâmico variam tanto
quanto, por exemplo, as conquistas das mulheres no mundo cristão. Mas o que faz o mundo islâmico ser visto como uma entidade única é o fato de que os países
são regidos pela sharia, a lei islâmica. Mesmo Estados de governo
secular, como a Turquia, recorrem à sharia como base para o seu
Código Civil.
No Egito, por exemplo, a sharia
continua hegemônica sobre o Código Civil, tendo a última palavra
em questões como casamento,
herança, divórcio, adoção, custódia dos filhos, decência.
Assim é que, quando assinam
acordos internacionais para preservar os direitos do cidadão, ou
das mulheres mais especificamente, países como o Egito fazem
ressalvas a certos artigos dizendo
que eles serão cumpridos "sempre que não infringirem a sharia".
Mas, se no mundo islâmico a
sharia é hegemônica, ela está longe de ser homogênea. Para o islã
do tipo sunita, que domina mais
de 90% do mundo islâmico e que
muitos acreditam ser o autêntico
islã, existem quatro escolas diferentes de interpretação das leis.
As escolas Hanafi, Hanbali, Shafi'i, e Maliki foram iniciadas por
intelectuais religiosos durante os
primeiros quatro séculos do islã.
Todas as quatro escolas se baseiam no mesmo corpo de leis. A
principal fonte da sharia é o Alcorão, o livro sagrado do islamismo.
A segunda fonte é a "Sunna", a
compilação autorizada dos dizeres e condutas do profeta Muhammad.
O problema maior começa aí.
Para quase todos os muçulmanos,
o Alcorão é a palavra de Deus e,
portanto, deve ser seguida como
algo sacrossanto. Mas, para muitos muçulmanos, a "Sunna", ou
mesmo os "hadiths" (dizeres do
profeta) não são nada mais que
registros históricos de atitudes
humanas, passíveis de erro.
Para alguns muçulmanos, como os membros da organização
Submission, com sede nos EUA
(www.submission.org), é quase
um sacrilégio elevar a "Sunna" ao
nível do Alcorão. É provavelmente aí que o maior problema ocorre: em vez de se limitarem às regras do Alcorão, muitas vezes
bastante progressistas para a época, a maioria dos países muçulmanos acaba seguindo os costumes tribais de 1.400 anos atrás registrados na "Sunna".
Enquanto o Alcorão tem cerca
de 6.000 versos e é bem mais curto
do que a Bíblia, a coleção da "Sunna" tem centenas de milhares de
versos que formam um corpo
amorfo de compilações autorizadas em gradações diferentes. Assim, um dizer do profeta que tenha sido registrado por uma testemunha ocular vale mais que outro dizer que tenha sido relatado
por uma testemunha para uma
segunda pessoa, que finalmente
tomou nota.
O "isnad", ou seja, a corrente de
pessoas pela qual uma citação ou
atitude do profeta passou, é basicamente o que determina a validade de um "hadith" ou não. Assim, o trabalho de selecionar e interpretar um corpo tão extenso de
"exemplos a serem seguidos" é
tão complexo e tão subjetivo que
o islã sunita praticamente proíbe
a interpretação pessoal. Os fiéis
não podem ser subjetivos, mas
são obrigados a seguir a subjetividade dos líderes religiosos.
"Sopa de regulamentos"
A advogada paquistanesa muçulmana Sardar Ali, tentou explicar em uma conferência em Londres como a lei muçulmana é aplicada. Para ela, existe a lei muçulmana encontrada nos livros sagrados e o que ela chama de "lei
islâmica operativa". Esta seria
uma coleção de passagens e regras fora de contexto que, colocadas em conjunto, servem para
oprimir a mulher e manter uma
interpretação bastante parcial da
lei de Deus.
O extenso número de citações,
muitas vezes totalmente contraditórias entre si, permite aos intérpretes das leis criar sua própria
"sopa de regulamentos" e impor o
que quiserem.
Principalmente por isso, a situação das mulheres no mundo islâmico muda tanto de um país para
o outro. No Paquistão, como em
quase todos os países muçulmanos, sexo fora do casamento é
proibido. E o estupro só é considerado como tal se houver quatro
testemunhas. Assim, a vítima de
um estupro corre o risco de ser
presa por fornicação se ela não tiver testemunhas.
No Paquistão, portanto, é melhor ficar calada depois do estupro. Em 1998, nada menos que
um terço das mulheres presas em
Peshawar, Lahore e Mardan
aguardavam julgamento sob acusação de adultério.
Mas, enquanto no mesmo Paquistão as mulheres vêm ocupando cargos importantes no governo, na Arábia Saudita só agora as
mulheres ganharam o direito a
uma "identidade" -pela primeira vez na história daquele país, as
mulheres terão direito a portar
um cartão que as identifique.
"Preservar a honra"
Na Jordânia, uma batalha que já
dura anos vem causando mais repercussão que o normal porque
está levando a própria família real
às ruas contra o Parlamento. A
causa da discórdia é o artigo 340
do Código Penal, que reduzir ou
mesmo elimina a pena para homens que cometem homicídio
para "preservar a honra". Cerca
de um terço dos homicídios na
Jordânia envolve maridos, irmãos
ou pais que mataram mulheres
sob essa alegação.
Em fevereiro de 2000, o Parlamento da Jordânia levou menos
de cinco minutos para rejeitar a
proposta de mudança do artigo
340. O partido da Frente Islâmica
de Ação classificou a mudança
como uma tentativa de "destruir
os valores islâmicos, sociais e familiares, ao despir o homem de
sua humanidade, não permitindo
que ele fique com raiva ao surpreender sua mulher cometendo
adultério".
Uma das maiores defensoras do
direito das mulheres jordanianas
vítimas de "crimes de honra" é a
jornalista Rana Husseini. Famosa
pela causa que abraçou, a jornalista convive agora com o respeito
de ONGs internacionais e com
ameaças de morte de fundamentalistas islâmicos que confundem
um código tribal com o islã.
Um dos casos contados por
Husseini mostra como, para certas pessoas, a mulher está diretamente associada ao pecado, e é
mesmo a origem de sua existência: "Eu me deparei com uma história muito triste. Uma estudante
de 16 anos foi assassinada pelo seu
irmão porque o irmão mais novo
a estuprou". Para o parlamentar
Mohammad Kharabshe, que se
opôs à mudança no código, "mulheres adúlteras são uma grave
ameaça à sociedade, porque elas
são a principal razão pela qual tais
crimes acontecem".
Com um princípio análogo a algo como "vamos acabar com os
supermercados para evitar o assalto aos caixas", o parlamentar
explicou que, "se os homens não
encontram mulheres com quem
cometer adultério, então eles vão
se tornar bons por conta própria".
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