São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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Alguns países islâmicos negam à mulher direitos básicos

Cidadãs de segunda classe

PAULA SCHMITT
FREE-LANCE PARA A FOLHA, NO CAIRO

As conquistas feministas no mundo islâmico caminham a passos lentos, lentíssimos até. Mas caminham. As vitórias, contudo, são tão modestas que feministas no resto do mundo têm dificuldade para comemorar. As mudanças mais recentes são um bom exemplo do misto de sentimentos que provocam: alegria pela conquista e revolta ao notar que certos direitos básicos vinham sendo negados até então.
É o caso, por exemplo, do direito de ir e vir. No Egito, um país em que as mulheres podem ser eleitas deputadas e nomeadas ministras, só agora elas podem comemorar o direito de viajar sem precisar da autorização de um homem -marido, pai ou irmão. Tal lei não vinha da época dos califas ou do Alcorão. Surgiu de um decreto de 1959, estipulando que a mulher não poderia viajar sem permissão do seu "guardião".
E, como se não fosse o bastante, em 1996 um novo decreto foi ainda mais longe e decidiu que a mulher não poderia ter um passaporte sem que o marido o permitisse. Ao menos oficialmente, tal lei tem como intenção "proteger a mulher". O decreto foi editado durante o governo secular de Gamal Abdel Nasser (1956-70) sob o pretexto de proteger as mulheres das redes de prostituição.
A proibição não é inédita no mundo islâmico. No Iêmen, no Irã e na Arábia Saudita as mulheres também têm seus movimentos limitados. Mas em países como Jordânia, Tunísia, Marrocos e mesmo Kuait, elas têm o direito de ir e vir sem precisar da aprovação de um "responsável".
De acordo com Zeinab Radwan, diretora da Faculdade de Estudos Islâmicos na Universidade do Cairo, o islã não permite que nenhum dos cônjuges force o outro a aceitar algo que ele não queira. O próprio xeque Mohammed Tantawi, a maior autoridade do islã sunita, apoiou as mudanças na lei do status legal que dão à mulher o direito de ir e vir.

Nacionalidade
Apesar da suposta boa intenção de proteger as mulheres da prostituição, a lei não deixava de ser mais uma maneira de manter a autoridade do homem sobre a mulher. É esse o caso de outra lei, que, sob muitos protestos, continua em pleno vigor. Sob alegação de estar protegendo a "soberania nacional", o Egito nega às mulheres o direito de passar a nacionalidade egípcia aos filhos se o pai das crianças for estrangeiro.
Aos homens, contudo, tal direito não é negado. É como se a legitimidade de um egípcio fosse avalizada somente pelo lado paterno. Para os filhos de egípcias casadas com estrangeiros, não existe escola pública gratuita nem universidade, hospital, direito a voto e passaporte. São como turistas no próprio país. O mesmo acontece com filhos de prostitutas. Outros países árabes, como o Kuait, têm regras similares.

Divórcio
Mas, se algumas leis têm origem na suposta "segurança nacional", outras não se dão nem ao trabalho de alegar motivos mais nobres. Um bom exemplo é a lei -já abolida no Egito-que forçava a mulher a voltar para casa, se o marido assim o quisesse, com a ajuda da polícia.
Segundo a educadora Zeinab Radwan, que também é vice-presidente do Conselho Nacional da Mulher, a lei é erroneamente associada ao islã. "Parece quase criminoso", escreveu Radwan no jornal semi-estatal "Al Ahram", "que, quando confrontadas com o Alcorão e a "Sunna" [dizeres e práticas do profeta Muhammad", muitas das restrições revelam-se produtos de patriarcado espúrio."
O pior, diz ela, "é que ainda assim tais restrições são confundidas com o islã". Mas não é à toa. São muçulmanos que interpretam o Alcorão e a "Sunna" e transformam a prática em algo muito mais restritivo que a teoria. É esse o caso da lei do divórcio.
Não existe nada no Alcorão que diga que o direito ao divórcio é exclusivo do homem. Ao contrário: algumas passagens dizem claramente que o homem não deve obrigar a mulher a fazer o que não quer e deve "deixá-la ir com generosidade" e casar-se de novo quando ela assim desejar.
Mas, na prática, os maridos no Egito podem se divorciar de suas mulheres sem a necessidade de um juiz ou advogado. Basta dizer três vezes "eu me divorcio de ti" para que o homem no Egito e em outros países árabes esteja legalmente divorciado.
Segundo Saad Edin Ibrahim, o intelectual egípcio-americano que está preso sob acusação de que sua ONG recebeu doações de entidades estrangeiras (no caso a União Européia), "o verdadeiro interesse dos homens que se opõem à lei [do divórcio" é assegurar a dominação e a hegemonia masculina sobre a mulher".

Obediência
Depois de pelo menos dez anos de acirrado debate -e de alguns casos em que as mulheres literalmente cortaram os maridos em pedaços para se verem livres deles-, em janeiro de 2000 as mulheres conquistaram o direito ao divórcio, ou melhor, ao "khula" -as feministas fazem questão de ressaltar a diferença.
No "khula" (pronuncia-se rula), a mulher pode pedir a separação mesmo que o marido não concorde, mas ela tem de devolver o equivalente ao dote. Por conta disso, muitas mulheres vão continuar presas aos maridos porque não terem como pagar. O pior é que as mulheres que requerem o "khula" perdem automaticamente o direito à pensão alimentícia.
Para a feminista egípcia Nawal Saadawi, tal caso serve para confirmar o que ela acredita ser o fundamento do código matrimonial islâmico: obediência em troca de sustento material. O "khula", acreditam Saadawi e outras feministas, é um divorcio capenga, que só pode ser requerido por mulheres ricas. Às pobres sobram duas opções: manter o casamento infeliz ou ficar na miséria.

Sharia
As conquistas das mulheres no mundo islâmico variam tanto quanto, por exemplo, as conquistas das mulheres no mundo cristão. Mas o que faz o mundo islâmico ser visto como uma entidade única é o fato de que os países são regidos pela sharia, a lei islâmica. Mesmo Estados de governo secular, como a Turquia, recorrem à sharia como base para o seu Código Civil.
No Egito, por exemplo, a sharia continua hegemônica sobre o Código Civil, tendo a última palavra em questões como casamento, herança, divórcio, adoção, custódia dos filhos, decência.
Assim é que, quando assinam acordos internacionais para preservar os direitos do cidadão, ou das mulheres mais especificamente, países como o Egito fazem ressalvas a certos artigos dizendo que eles serão cumpridos "sempre que não infringirem a sharia".
Mas, se no mundo islâmico a sharia é hegemônica, ela está longe de ser homogênea. Para o islã do tipo sunita, que domina mais de 90% do mundo islâmico e que muitos acreditam ser o autêntico islã, existem quatro escolas diferentes de interpretação das leis.
As escolas Hanafi, Hanbali, Shafi'i, e Maliki foram iniciadas por intelectuais religiosos durante os primeiros quatro séculos do islã.
Todas as quatro escolas se baseiam no mesmo corpo de leis. A principal fonte da sharia é o Alcorão, o livro sagrado do islamismo. A segunda fonte é a "Sunna", a compilação autorizada dos dizeres e condutas do profeta Muhammad.
O problema maior começa aí. Para quase todos os muçulmanos, o Alcorão é a palavra de Deus e, portanto, deve ser seguida como algo sacrossanto. Mas, para muitos muçulmanos, a "Sunna", ou mesmo os "hadiths" (dizeres do profeta) não são nada mais que registros históricos de atitudes humanas, passíveis de erro.
Para alguns muçulmanos, como os membros da organização Submission, com sede nos EUA (www.submission.org), é quase um sacrilégio elevar a "Sunna" ao nível do Alcorão. É provavelmente aí que o maior problema ocorre: em vez de se limitarem às regras do Alcorão, muitas vezes bastante progressistas para a época, a maioria dos países muçulmanos acaba seguindo os costumes tribais de 1.400 anos atrás registrados na "Sunna".
Enquanto o Alcorão tem cerca de 6.000 versos e é bem mais curto do que a Bíblia, a coleção da "Sunna" tem centenas de milhares de versos que formam um corpo amorfo de compilações autorizadas em gradações diferentes. Assim, um dizer do profeta que tenha sido registrado por uma testemunha ocular vale mais que outro dizer que tenha sido relatado por uma testemunha para uma segunda pessoa, que finalmente tomou nota.
O "isnad", ou seja, a corrente de pessoas pela qual uma citação ou atitude do profeta passou, é basicamente o que determina a validade de um "hadith" ou não. Assim, o trabalho de selecionar e interpretar um corpo tão extenso de "exemplos a serem seguidos" é tão complexo e tão subjetivo que o islã sunita praticamente proíbe a interpretação pessoal. Os fiéis não podem ser subjetivos, mas são obrigados a seguir a subjetividade dos líderes religiosos.

"Sopa de regulamentos"
A advogada paquistanesa muçulmana Sardar Ali, tentou explicar em uma conferência em Londres como a lei muçulmana é aplicada. Para ela, existe a lei muçulmana encontrada nos livros sagrados e o que ela chama de "lei islâmica operativa". Esta seria uma coleção de passagens e regras fora de contexto que, colocadas em conjunto, servem para oprimir a mulher e manter uma interpretação bastante parcial da lei de Deus.
O extenso número de citações, muitas vezes totalmente contraditórias entre si, permite aos intérpretes das leis criar sua própria "sopa de regulamentos" e impor o que quiserem.
Principalmente por isso, a situação das mulheres no mundo islâmico muda tanto de um país para o outro. No Paquistão, como em quase todos os países muçulmanos, sexo fora do casamento é proibido. E o estupro só é considerado como tal se houver quatro testemunhas. Assim, a vítima de um estupro corre o risco de ser presa por fornicação se ela não tiver testemunhas.
No Paquistão, portanto, é melhor ficar calada depois do estupro. Em 1998, nada menos que um terço das mulheres presas em Peshawar, Lahore e Mardan aguardavam julgamento sob acusação de adultério.
Mas, enquanto no mesmo Paquistão as mulheres vêm ocupando cargos importantes no governo, na Arábia Saudita só agora as mulheres ganharam o direito a uma "identidade" -pela primeira vez na história daquele país, as mulheres terão direito a portar um cartão que as identifique.

"Preservar a honra"
Na Jordânia, uma batalha que já dura anos vem causando mais repercussão que o normal porque está levando a própria família real às ruas contra o Parlamento. A causa da discórdia é o artigo 340 do Código Penal, que reduzir ou mesmo elimina a pena para homens que cometem homicídio para "preservar a honra". Cerca de um terço dos homicídios na Jordânia envolve maridos, irmãos ou pais que mataram mulheres sob essa alegação.
Em fevereiro de 2000, o Parlamento da Jordânia levou menos de cinco minutos para rejeitar a proposta de mudança do artigo 340. O partido da Frente Islâmica de Ação classificou a mudança como uma tentativa de "destruir os valores islâmicos, sociais e familiares, ao despir o homem de sua humanidade, não permitindo que ele fique com raiva ao surpreender sua mulher cometendo adultério".
Uma das maiores defensoras do direito das mulheres jordanianas vítimas de "crimes de honra" é a jornalista Rana Husseini. Famosa pela causa que abraçou, a jornalista convive agora com o respeito de ONGs internacionais e com ameaças de morte de fundamentalistas islâmicos que confundem um código tribal com o islã.
Um dos casos contados por Husseini mostra como, para certas pessoas, a mulher está diretamente associada ao pecado, e é mesmo a origem de sua existência: "Eu me deparei com uma história muito triste. Uma estudante de 16 anos foi assassinada pelo seu irmão porque o irmão mais novo a estuprou". Para o parlamentar Mohammad Kharabshe, que se opôs à mudança no código, "mulheres adúlteras são uma grave ameaça à sociedade, porque elas são a principal razão pela qual tais crimes acontecem".
Com um princípio análogo a algo como "vamos acabar com os supermercados para evitar o assalto aos caixas", o parlamentar explicou que, "se os homens não encontram mulheres com quem cometer adultério, então eles vão se tornar bons por conta própria".


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