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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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Crise faz argentinos reviverem ritmos identificados com o país e a inventarem trabalho, como catar papel

Tango conforta melodrama econômico

ELAINE COTTA
MARCELO BILLI
DE BUENOS AIRES

São 23h e Emilio Isaurralde, 12, caminha pelas ruas centrais de Buenos Aires com três de seus oito irmãos. Estão à procura de papel e papelão. Se tiverem sorte, juntarão o suficiente para ganhar R$ 10 por uma noite de trabalho.
Como os quatro irmãos, todas as noites milhares de desempregados partem das cidades próximas a Buenos Aires para revirar o lixo da capital argentina. Eles inventaram uma profissão que, há cinco anos, não existia no país. "Eu sou cartoneiro", diz Emilio, feliz porque encontrou algo mais valioso que papelão. Uma caixa de CDs usados que, diz, pode valer mais de R$ 3.
O colapso da economia argentina deixou desempregada ou subempregada mais da metade da população do país. O pai de Emilio, Teofilo Isaurralde, 55, deixou a Província de Corrientes, no nordeste argentino, para viver em La Matanza, cidade industrial da Grande Buenos Aires.
Ele chegou a Buenos Aires na década de 70. "Demorei três dias para encontrar trabalho". Isaurralde era agricultor em Corrientes e transformou-se em operário de uma indústria química local. Comprou casa, casou-se e, no final dos anos 80, perdeu o emprego. "Fui trabalhar de pedreiro. Quando chegou o turco [o ex-presidente Carlos Menem, eleito em 1989], todos começaram a construir e sobrava dinheiro."
A prosperidade econômica durou pouco. Em 98, a economia argentina entrou em recessão. Isaurralde sofreu um acidente de carro que o imobilizou por quase um ano. O filho mais velho conseguiu um emprego como carregador de lenha. Os demais partem todas as noites num trem para Buenos Aires, recolhem papel e papelão, vendem o que conseguem já de madrugada e, às 3h ou 4h, voltam para casa. Emilio volta mais cedo. Tem aula às 7h.
No ano passado, conta Emilio, ele viajou à cidade de Lújan, interior de Buenos Aires. Ganhou a viagem como prêmio por um trabalho escolar bem feito.
Todos os nove irmãos vão à escola, apesar da quase indigência em que vive a família: a única fonte de renda fixa é um benefício para desempregados que recebem do governo, de R$ 150.
Na escola, todos têm pelo menos uma refeição diária. Mas a assiduidade também é resultado da insistência dos pais. A família não é exceção. Estudo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) sobre o impacto da crise econômica sobre as famílias argentinas mostra que, apesar de os chefes de família terem cortado gastos com material escolar, a evasão não aumentou durante os últimos cinco anos de recessão.

Cantar para viver
A crise também abateu a classe média. O mesmo estudo da Cepal mostra que, em todas as faixas de renda, a população teve de apertar os cintos: mudando hábitos de consumo, diminuindo gastos com educação, saúde, serviços.
Astrid Neiff, cantora lírica, 21, uma típica argentina de classe média, encontrou uma forma muito particular de se adaptar à crise. Ela chega no início da tarde à Florida, uma movimentada rua no centro financeiro de Buenos Aires. Leva um gravador e alguns CDs de óperas famosas. Canta por uma hora. Executivos, turistas e estudantes param para ouvir trechos da ópera Don Giovanni, de Mozart. Um pouco atônitos, deixam alguns pesos no chapéu que Astrid coloca em frente a uma pequena placa: "Astrid Neiff, animação de festas, aniversários, reuniões de empresas".
Estudante de música desde os 14, Astrid quase desistiu da carreira quando, em 2000, viu seu grupo de ópera se dissolver. Trabalhou como secretária até resolver aceitar a sugestão do marido, que pensava que era uma boa idéia enfrentar o público nas ruas. "Não tinha tempo para estudar e me sentia triste por ter de abandonar a música."
Os shows lhe garantem cerca de R$ 40 por dia. "O meu trabalho, diante das condições econômicas do país, é bem pago. Ganho mais do que meu marido, que tem um emprego num escritório."
Ela conquistou admiradores. Alguns surpresos, outros revoltados por "uma jovem de talento ter de se sujeitar a isso". Para Astrid, ser a única cantora lírica da rua Florida garante alguma renda extra. Desde o final do ano passado, executivos que trabalham na região a convidam para cantar em festas e reuniões. "Com esse trabalho, faço o que gosto e tenho tempo para estudar e me dedicar ainda mais à música."
Cantar nas ruas também a ajudou a perder o medo do público. Astrid diz que tinha receio de que as pessoas simplesmente não parassem para escutá-la. Estava enganada. "O fato de você ter de inventar o repertório na hora para fazer com que o público fique é um aprendizado fantástico."

Dançar para viver
A menos de oito quadras de onde Astrid canta, uma pequena fila se forma em frente a uma tradicional confeitaria de Buenos Aires. São quase 15h, e um famoso DJ vai tocar no local. Carlos Gardel (1890-1935), o mais famoso cantor e compositor de tangos de Buenos Aires, domina o repertório. A Confeitaria Ideal vai deixar, durante pelo menos cinco horas, de ser apenas uma confeitaria antiga para se transformar numa agitada "milonga".
Na fila, dezenas de "milongueiros" de todas as idades. Explica-se: em Buenos Aires, os salões onde se dança tango são chamados de "milongas", os aficionados pelo ritmo argentino, "milongueiros".
As milongas foram provavelmente parte dos poucos negócios que não sofreram com a crise econômica que destruiu 16% da economia argentina. Mais a recessão se agravava, maior o colapso social, maior o número de pessoas interessadas em aprender a dançar. "Parece que os argentinos correm para o tango todas as vezes que a economia vai mal. Foi assim na década de 80. É assim agora", explica Sharon Hillman, bailarina e pesquisadora americana. Sharon dança tango há mais de sete anos e frequenta praticamente uma milonga por dia.
Nos últimos anos, os jovens argentinos passaram a se interessar pelo ritmo. As milongas, antes território exclusivo dos argentinos de meia-idade, começaram a ser invadidas por adolescentes ávidos por classes de tango. "Os jovens estão se conectando mais com o tango e buscando o contato com a cultura e as origens do país", arrisca Luis Calvo, proprietário da Niño Bien, uma das grandes milongas da cidade.

Pular
Menos sofisticadas que o tango, as murgas -espécie de bloco carnavalesco- fizeram tanto sucesso quanto Gardel. Entre os dias 8 de fevereiro e 2 de março, mais de cem blocos saíram às ruas de Buenos Aires. São grupos de 10 a 50 jovens, se vestem com roupas coloridas e brilhantes, saltam como loucos, dançam como se estivessem bêbados.
Há várias versões para o surgimento das murgas. A mais popular é a de que eram bailes organizados pelos escravos. Imitavam os bailes dos brancos, mas, como não gostavam das roupas brancas, preferiam ternos azuis, vermelhos e amarelos.
As murgas haviam quase desaparecido. No início dos anos 90, havia dez grupos em toda a Buenos Aires. Como o tango, elas geraram um súbito interesse nos portenhos. Nos três primeiros meses do ano, havia murgas em todos os tipos de reuniões: nos protestos dos grupos de desempregados, nas reuniões das assembléias de bairro, em festas de casamento da classe média alta argentina.

Ser argentino
"Por que o tango? A murga? Por uma questão de saúde mental o ser humano precisa se sentir parte de algo. Nos últimos anos, estava difícil ser argentino. Voltar a dançar tango é voltar a fazer parte de algo. Algo argentino", diz o sociólogo Eugenio Vuidepot.
Vuidepot analisa o "despertar argentino" com ceticismo. Ele diz que não é a primeira vez que o tango se transforma no "muro de arrimo" em época de crise. "Parece que essa devoção repentina ao tango, à murga, ao "made in Argentina" é a resposta para a nossa incapacidade de nos organizarmos politicamente e encontrar uma solução para a crise".

Consumir
Carmem Gomina, 36, não dança tango. Ela vive em Rio Cuarto, cidade de 160 mil habitantes na Província de Córdoba. Há pouco mais de um mês, ela caminhava pela calçada da avenida principal da cidade, cinco sacolas nos braços. "Você acredita nisso? Parece que nesta cidade há mais carros que gente", dizia, apontando para a avenida congestionada.
Era um domingo, e parecia haver carros em todas as ruas da cidade. Pessoas comprando, lojas abertas, restaurantes cheios. A recuperação econômica argentina parecia ter chegado antes a Rio Cuarto. E de fato chegou. A economia local depende da agricultura. A queda do peso tornou os produtos argentinos muito mais baratos no exterior, e o primeiro setor a reagir foi o agrícola.
Em Rio Cuarto, isso significou produtores comprando máquinas e contratando trabalhadores. O marido de Carmem, desempregado havia três anos, conseguiu uma vaga. Ela, como muitos outros de Rio Cuarto, parecia muito feliz em deixar a crise para trás.


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