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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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ARTIGO

A guerra e seus juízos contraditórios

JÜRGEN HABERMAS


Uma guerra ilegal é um ato contrário ao direito internacional, mesmo levando a êxitos normativamente desejados. Mas essa é toda a história?


O mundo inteiro observou aquelas cenas de 9 de abril em Bagdá; acompanhou como os soldados americanos enlaçaram o pescoço do ditador e, para o júbilo da multidão, derrubaram-no do pedestal, num ato carregado de simbolismo. Primeiro, a estátua aparentemente inabalável oscilou, para em seguida desabar. Antes de ela ir livremente ao chão, a força da gravidade precisou superar a posição grotesca de estar suspensa na horizontal, na qual a figura maciça permaneceu, como que por alguns segundos de susto, balançando levemente para cima e para baixo. Como naquelas imagens da Gestalt, a percepção pública da guerra parece se inverter com essa cena. Nesse dia, no bairro xiita de Bagdá, a propagação moralmente obscena de "choque e pavor" sobre uma população bombardeada sem complacência, extenuada e indefesa, transforma-se na saudação entusiasmada da libertação dos cidadãos do terror e da repressão. Ambas as percepções contêm um momento de verdade, embora provoquem sentimentos morais e tomadas de posição discrepantes. A ambivalência dos sentimentos deve levar a juízos contraditórios?
À primeira vista, a coisa é simples. Uma guerra ilegal continua sendo um ato contrário ao direito internacional, mesmo levando a êxitos normativamente desejados. Mas essa é toda a história? Consequências nefastas podem deslegitimar uma boa intenção. Boas consequências não poderiam desdobrar uma força legitimadora a posteriori? As valas comuns e os relatos dos torturados não deixam nenhuma dúvida quanto à natureza criminosa do regime; e a libertação de uma população atormentada seria o mais elevado entre os bens politicamente desejáveis. Nesse aspecto, os iraquianos também pronunciam um juízo sobre a natureza moral da guerra quando jubilam, saqueiam, ficam apáticos ou protestam contra as forças de ocupação. Entre nós, delineiam-se duas reações na esfera pública política.
Os pragmáticos crêem na força normativa do fático e se entregam a uma faculdade de julgar a prática que louva o fruto da vitória com vista aos limites políticos da moral. A seus olhos, o raciocínio sobre a justificação da guerra é infecundo, visto que nesse meio tempo ela se tornou fato histórico. Os outros, seja por oportunismo, seja por convicção, capitulam perante a força do fático, empurrando para o lado o que consideram agora dogmatismo do direito internacional, com a justificativa de que ele, por puro melindre pós-heróico em relação aos riscos e aos custos da violência militar, fecha os olhos para a liberdade política, considerada o verdadeiro valor. Ambas as reações não vão longe, visto que cedem à paixão contrária às supostas abstrações de um "moralismo exangue", sem ter clareza sobre a alternativa oferecida pelos neoconservadores de Washington à domesticação da violência estatal no plano do direito internacional. Pois estes não contrapõem à moral do direito internacional nem o realismo nem o patos da liberdade, mas uma perspectiva revolucionária: se o regime do direito internacional falha, a imposição hegemônica política e mais eficaz de uma ordem mundial liberal está moralmente justificada mesmo quando se serve de meios contrários ao direito internacional.
Wolfowitz não é Kissinger. Ele é antes um revolucionário do que um cínico do poder. Certamente, a superpotência se reserva o direito de agir de modo unilateral e, se necessário, de empregar de maneira preventiva todos os meios militares disponíveis para firmar sua posição hegemônica. Mas a ambição de poder global não é um fim em si mesmo para os novos ideólogos. O que distingue os neoconservadores da escola dos "realistas" é a visão de uma política americana de ordem mundial que salta dos trilhos reformistas da política dos direitos humanos conduzida pela ONU. Ela não trai os objetivos liberais, mas arrebenta as ligas civilizadoras que a constituição da ONU impõe, com boas razões, ao processo de realização desses objetivos.
 
Certamente ainda hoje a ONU não está em condições de forçar os membros divergentes a garantir a seus cidadãos uma ordem de democracia e de Estado de Direito. E a política dos direitos humanos, perseguida de maneira sumamente seletiva, encontra-se sob a reserva do possível: com o poder de veto, a Rússia não precisa temer uma intervenção armada na Tchetchênia. O emprego de armas químicas por parte de Saddam Hussein contra a própria população curda é só um dos muitos casos na escandalosa crônica das falhas de uma comunidade de Estados que dá as costas mesmo para genocídios. Por isso, é tanto mais importante a função central de assegurar a paz, na qual se fundamenta a existência da ONU, ou seja, a imposição do interdito de guerras ofensivas, que aboliu o jus ad bellum após a Segunda Guerra e restringiu a soberania dos Estados tomados individualmente. Desse modo, o direito internacional deu ao menos um passo decisivo no caminho para uma situação jurídica cosmopolita.
Considerados durante meio século o condutor por esse caminho, os EUA destruíram com a guerra no Iraque não apenas essa reputação, renunciando ao papel de um poder que garantiria o direito internacional; com seu procedimento contrário a esse direito, eles também dão um exemplo devastador às superpotências futuras. Não nos iludamos: a autoridade normativa dos EUA está em ruínas. Nenhuma das condições para um emprego juridicamente legitimado de força foi preenchida: nenhuma situação de autodefesa contra um ataque atual ou iminente, nenhuma autorização do Conselho de Segurança.
Tampouco a comparação com a intervenção em Kosovo propicia alguma defesa. É verdade que também nesse caso não se obteve uma autorização por parte do Conselho de Segurança. Mas a legitimação, alcançada posteriormente, pôde se apoiar em três circunstâncias: no impedimento de uma limpeza étnica que se encontrava em andamento, no preceito do direito internacional de ajuda emergencial, válido erga omnes, assim como no caráter indubitavelmente democrático de todos os Estados-membros da aliança militar que agiu substitutivamente. Hoje, o dissenso normativo divide o próprio Ocidente.
No entanto, já naquele momento, em abril de 1999, delineou-se uma notável diferença nas estratégias de justificação entre as potências anglo-saxãs e as do continente europeu. Enquanto um lado tirava do desastre de Srebrenica a lição de fechar com a intervenção armada o abismo entre efetividade e legitimação aberto pelas ações anteriores, a fim de avançar desse modo pelo caminho do direito cosmopolita plenamente institucionalizado, o outro lado deu-se por satisfeito com o objetivo normativo de difundir a própria ordem liberal para outros cantos, se necessário com violência.
Contudo, não podemos entender a nova doutrina como expressão de um cinismo normativo. Funções como a segurança geoestratégica de esferas de influência e de recursos vitais, que uma semelhante política deve cumprir também, podem suscitar uma consideração típica da crítica ideológica. Mas essas explicações convencionais trivializam a ruptura, inimaginável um ano e meio atrás, com as normas a que os EUA estavam comprometidos até então.
 
Com razão, Hobsbawm denominou o século 20 de "século americano". Os neoconservadores podem se entender como "vitoriosos" e tomar os êxitos inquestionáveis como exemplos para uma nova ordem mundial, criada sob a liderança dos EUA. Da perspectiva de uma pós-história à Fukuyama, esse modelo teria a vantagem de dispensar a discussão prolixa de objetivos normativos: o que poderia ser melhor para as pessoas do que o alastramento mundial de Estados liberais e a globalização dos livres mercados? Também o caminho para isso é claro: Alemanha, Japão e Rússia foram forçados a dobrar os joelhos por meio da guerra e do armamento. Hoje, o poder militar se apresenta tanto mais porque, nas guerras assimétricas, está definido a priori o vencedor. Guerras que melhoram o mundo não precisariam de nenhuma outra justificação. Ao preço de danos colaterais desprezíveis, elas eliminam o mal inequívoco, que perduraria sob a égide de uma débil comunidade de Estados. Saddam caindo do pedestal é o argumento que basta para a justificação.
Essa doutrina foi desenvolvida muito antes do ataque terrorista às Torres Gêmeas. Todavia só a administração inteligente da psicologia das massas, resultante do choque compreensível do 11 de setembro, criou o clima em que a doutrina pôde encontrar ampla aceitação, mas em uma versão diferente, afiada para a "guerra contra o terrorismo".
Essa associação de unilateralismo hegemônico e de resistência ao perigo furtivo coloca em jogo o argumento da autodefesa. Todavia ela afunda em nova falta de evidências. O governo americano procurou convencer a opinião pública mundial dos contatos entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Essa campanha de desinformação foi tão bem-sucedida no próprio país que 60% dos americanos saúdam a mudança de regime no Iraque como "reparação" pelo 11 de setembro. Mas, para o emprego preventivo de meios militares, a Doutrina Bush não oferece realmente nenhuma explicação plausível. Visto que a violência não-estatal dos terroristas escapa às categorias da guerra entre Estados, ela não justifica de modo algum a necessidade de diluir o conceito de legítima defesa, regulada pelo direito internacional, no sentido de uma autodefesa belicosa e antecipada.
Contra os inimigos que operam em redes globais, só tem auxílio uma prevenção em outro plano de operação. Aqui, bombas não ajudam, mas sim a rede internacional de serviços de informação estatais, órgãos de ação penal, o controle de fluxos de dinheiro. Os "programas de segurança" correspondentes não afetam o direito internacional, mas sim os direitos civis garantidos pelo Estado. Outros perigos, que resultam do fracasso auto-imputável de uma política de não-propagação de armas de destruição em massa, podem ser superados muito mais por meio de negociações do que mediante guerras para o desarmamento, como mostra a reação comedida à Coréia do Norte.
A doutrina afiada para o combate ao terrorismo não oferece, portanto, nenhum ganho em legitimação perante o objetivo perseguido de uma ordem mundial hegemônica. Saddam caindo do pedestal continua sendo o argumento-símbolo para a nova ordem liberal de uma região inteira. A guerra contra o Iraque é o elo na cadeia de uma política de ordem mundial, que se justifica pelo fato de ela entrar no lugar da política vã dos direitos humanos de uma organização mundial gasta. Os EUA assumem o papel em que ONU fracassou. O que depõe contra? Sentimentos morais podem levar a erros, porque se prendem a cenas, a imagens particulares. Mas nenhum caminho pode passar ao largo da questão da justificação da guerra em seu todo. O dissenso decisivo consiste na questão de saber se é possível substituir o contexto jurídico da justificação pelo contexto da política unilateral de ordem mundial conduzida por um país hegemônico que se autoriza a si mesmo.
 
As objeções empíricas contra a exequibilidade do plano americano desembocam no fato de que a sociedade mundial se tornou complexa demais para ser controlada a partir de um centro e com os meios de uma política apoiada na força militar. Na angústia da superpotência armada com tecnologias de ponta perante o terrorismo, parece se condensar a angústia cartesiana de um sujeito que procura fazer de si mesmo e do mundo ao redor um objeto, a fim de colocar tudo sob controle. Em face dos media do mercado e da comunicação cultural e social, distendendo-se em redes horizontais, a política acaba perdendo terreno se regride para a figura originária hobbesiana de um sistema hierárquico de segurança. Um Estado que refere todas as opções à alternativa tola de guerra ou paz choca logo nos limites das próprias capacidades de organização e dos próprios recursos. Ele dirige também o entendimento com potências concorrentes e culturas alheias para canais equívocos e eleva os custos de coordenação a alturas vertiginosas.
Mesmo se o unilateralismo hegemônico fosse exequível, ele teria efeitos colaterais que são, segundo os próprios critérios, normativamente indesejados. Quanto mais o poder político se faz valer nas dimensões do Exército, do serviço secreto e da polícia, mais ele impede a si mesmo -mais ele impede a política no papel de um poder de configuração civilizadora mundial, pondo em risco a missão de aperfeiçoar o mundo segundo as idéias liberais. Nos próprios EUA, o regime de um "presidente da guerra", posto para durar, já começa a minar os fundamentos do Estado de Direito. Abstraindo inteiramente os métodos de tortura, praticados ou tolerados fora das fronteiras do país, o regime da guerra priva não só os prisioneiros em Guantánamo dos direitos que lhes cabem segundo as Convenções de Genebra. Ele também concede aos órgãos de segurança espaços de ação que restringem os direitos constitucionais dos cidadãos.
Mas o papel arrogado de fiduciário da superpotência esbarra principalmente na resistência dos parceiros de aliança que não estão convencidos, por boas razões normativas, da pretensão de liderança unilateral. Outrora o nacionalismo liberal se considerava autorizado a difundir no mundo todo os valores universais da própria ordem liberal, se necessário com o apoio militar. Essa presunção torna-se insustentável também porque ela passa do Estado nacional para um poder hegemônico. É justamente o cerne universalista da democracia e dos direitos humanos que proíbe a sua imposição unilateral a fogo e espada. A pretensão de validade universalista que o Ocidente vincula a seus "valores políticos fundamentais", ou seja, ao procedimento da autodeterminação democrática e ao vocabulário dos direitos humanos, não pode ser confundido com a pretensão imperial de que a forma de vida política e a cultura de uma determinada democracia, seja ela a mais antiga, é exemplar para todas as sociedades.
Era dessa espécie o "universalismo" daqueles antigos impérios que, além das suas fronteiras a desaparecer no horizonte, perceberam o mundo da perspectiva central das próprias imagens de mundo. A autocompreensão moderna está marcada, pelo contrário, por um universalismo igualitário, que insiste na descentralização das próprias perspectivas; ele obriga a desrelativizar a própria visão considerando as perspectivas de interpretação de outros que têm os mesmos direitos. Justamente o pragmatismo americano fez com que a percepção do que é igualmente bom e justo para todas as partes dependesse da adoção recíproca de perspectivas. A razão do direito racional moderno não se faz valer em "valores" universais de que se poderia apossar como se fossem bens, que se poderiam distribuir e exportar para todo o mundo. "Valores" -mesmo os que podem contar com reconhecimento global- não estão suspensos no ar, mas alcançam obrigatoriedade somente em ordens normativas e práticas de determinadas formas de vida cultural. Se, em Nassiriah, milhares de xiitas protestam contra Saddam e contra a ocupação americana, eles expressam também que culturas não-ocidentais têm de se apropriar do conteúdo universalista dos direitos humanos a partir dos próprios recursos e em uma versão que produz um vínculo convincente com as experiências e os interesses locais.
Por isso, inclusive nas relações entre Estados, a formação da vontade multilateral não é somente uma opção entre outras. Em seu isolamento voluntário, mesmo o país hegemônico que se projeta como fiduciário dos interesses universais não poderia saber absolutamente se o que ele afirma fazer no interesse dos outros é de fato igualmente bom para todos. Não há nenhuma alternativa sensata para o desenvolvimento cosmopolita de um direito internacional que dá atenção, de maneira igual e recíproca, às vozes de todos os concernidos. Até hoje, a ONU não sofreu maiores danos. Ela até mesmo ganhou em reputação e influência pelo fato de os "pequenos" do Conselho de Segurança não terem cedido às pressões dos grandes. A reputação da organização só pode ser arranhada por culpa própria: se tentar "salvar" por compromisso o que não pode ser salvo.

O texto acima foi publicado no jornal alemão "Frankfurter Allgemeine Zeitung" em 17 de abril de 2003.


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