São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

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ARTIGO

Sinais de tormenta no horizonte

MARCOS AGUINIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

É comum dizer que, depois de uma calmaria extrema, vem a tormenta. E é exatamente isso que desejamos que não venha a se repetir. Mesmo assim, o prognóstico é de que nuvens pesadas estejam começando a se acumular além do horizonte.
De fato, depois da crise que surgiu no final de 2001 e se estendeu até 2003, a Argentina se recuperou economicamente, ainda que sem alcançar o desenvolvimento sustentável. Só os partidários da atual administração atribuem essa recuperação às medidas do governo. Na verdade, parece que o governo fez todo o possível para desperdiçar essa extraordinária oportunidade em um populismo demagógico cuja única aspiração é concentrar o poder e a riqueza em algumas poucas mãos.
A gestão de Néstor Kirchner se caracterizou por uma demolição de instituições, própria de governos autoritários ou até ditatoriais. O Congresso se tornou um apêndice desprestigiado do Executivo, e a Justiça teme linchamentos caso divulgue excessivamente os atos de corrupção. Em poucas palavras, a Argentina caiu sob o governo de um punhado de indivíduos, ou talvez de apenas um casal.
Ou seja, na prática se instalou uma espécie de monarquia que nem mesmo podemos definir como constitucional.
Kirchner conseguiu promover a convicção de que sua mulher obterá os 40% dos votos necessários a ungi-la presidente sem necessidade de segundo turno. Caso Cristina Kirchner não consiga amanhã os 40% necessários, haverá segundo turno e ela indubitavelmente sairá derrotada caso isso ocorra. A sensação de que não haverá segundo turno gerou indiferença política. A resignação, fruto de uma prolongada impotência, aumentou.
Por outro lado, os partidos tradicionais -o peronismo e o radicalismo- se fragmentaram e a oposição é um arquipélago de candidatos. Ninguém foi capaz de promover a união entre eles, ainda que existam interesses compartilhados. Esses interesses consistem de elementos tão simples e tão poderosos quanto devolver a independência e a majestade ao Congresso e à Justiça, exercer controle sobre os gastos públicos arbitrários, reforçar a transparência, acabar com as pressões sobre a imprensa, fortificar a segurança jurídica, atrair investimentos e devolver ao país uma Presidência mais confiável na arena internacional.
O casal Kirchner é responsável pela deterioração institucional e pelo aumento da insegurança pública. E a insegurança foi negada até o absurdo; fica evidente que as autoridades não fazem idéia de como deter seu crescimento. Por outro lado, o temido monstro da inflação, que já causou imensos estragos ao país, voltou a abrir as asas. O governo nega o fato, e chegou a forçar a falsificação dos índice oficiais compilados pelo Indec, rebatizado pelo humor popular como IndeK, porque tudo que contenha a letra K traz gotas de amargura.
Em conseqüência, Néstor Kirchner legaria a sua mulher Cristina um país sofrendo de inflação irrefreável, insegurança, extraordinária fraqueza institucional, delitos de corrupção jamais esclarecidos, milhões de pessoas que vivem de verbas públicas distribuídas por meio de subsídios demagógicos, bem como o final de um superávit fiscal dilapidado na campanha eleitoral. Muita gente se pergunta a quem Cristina Fernández atribuirá a culpa, porque nós, argentinos, levamos a má fama de sempre acusar os outros pelos nossos erros, em especial o governo anterior. E o casal também sofre o risco de investigações por enriquecimento ilícito. Não aconteceriam logo caso Cristina venha a ser ungida presidente, mas, em caso de derrota, o destino deles poderia ser pior que o de Menem. Ainda não se sabe onde foram parar as muitas centenas de milhões de dólares que Kirchner remeteu ao exterior quando era governador de sua Província sulista, e tampouco se sabe muito sobre os negócios realizados por seus operadores na administração presidencial, e sobre aqueles que um setor da imprensa se esforçou por expor aos olhos da sociedade e dos juízes, com pouco sucesso até o momento.
É possível que o conjunto de diversos elementos mencionados acima represente os pincéis que pintam de tons lúgubres a nuvem de tempestade que espera logo além do horizonte, e que talvez demore alguns meses para se apresentar em sua dimensão real. Mas um vasto setor do país prefere negar a existência dos problemas e isso pode ou não se manifestar na eleição de amanhã.


MARCOS AGUINIS , 72, é romancista e ensaísta argentino, autor de "O Atroz Encanto de Ser Argentino" (Bei Comunicação, 2002)

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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