São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

Texto Anterior | Índice

HOLOCAUSTO

Historiador diz que filme sobre o empresário que salvou judeus do nazismo simplifica história de modo absurdo

Biografia revisa mito de Oskar Schindler


O filme foi um teatro sem precisão histórica; Schindler teve pouco a ver com a lista que leva seu nome


DINITIA SMITH
DO "NEW YORK TIMES"

Uma nova e bem fundamentada biografia de Oskar Schindler, o empresário alemão que salvou mais de mil judeus dos nazistas, entra em choque com seu retrato idealizado pintado no filme premiado com o Oscar "A Lista de Schindler" (1993), de Steven Spielberg, e no trabalho de ficção histórica de Thomas Keneally, publicado em 1982, que inspirou o longa-metragem.
O Schindler que emerge deste relato mais recente -baseado em entrevistas com sobreviventes do Holocausto e em documentos descobertos recentemente, entre eles cartas guardadas numa maleta por uma amante de Schindler- é um homem muito mais falho do que o retratado no filme e no livro. Ainda assim, dizem estudiosos, as novas revelações sobre o lado mais sombrio de Schindler ressaltam ainda mais sua transformação moral e seu heroísmo.
Para começo de conversa, não houve uma lista de Schindler. "Schindler não teve quase nada a ver com a lista", diz David M. Crowe, historiador do Holocausto e professor da Universidade Elon, na Carolina do Norte, cujo livro "Oskar Schindler: The Untold Account of His Life, Wartime Activities and the True Story Behind the List" [Oskar Schindler - o relato inédito de sua vida, suas atividades na guerra e a verdadeira história por trás da lista], foi lançado recentemente pela Westview Press.
No filme, Schindler, representado por Liam Neeson, é visto, em 1944, dando ao gerente judeu de sua fábrica de armas e artigos esmaltados em Cracóvia, Polônia, os nomes de trabalhadores judeus a serem levados à relativa segurança da atual República Tcheca. Na época, porém, disse Crowe em entrevista telefônica, Schindler estava preso por tentativa de suborno de Amon Goth, o brutal comandante da SS representado por Ralph Fiennes no filme, e o gerente em questão, Itzhak Stern (representado por Ben Kingsley no filme), nem sequer trabalhava para Schindler.
Crowe disse que houve nove listas. As primeiras quatro foram redigidas principalmente por Marcel Goldberg, um policial judeu corrupto, assistente de um oficial da SS encarregado do transporte de judeus (mais tarde, Goldberg foi acusado de favorecimento e de aceitar propinas). Schindler sugeriu alguns nomes, disse Crowe, mas não conhecia a maioria das pessoas. Os autores das outras cinco listas são desconhecidos.
Crowe disse que a lenda sobre a lista surgiu em parte por obra de Schindler, para retratar seu heroísmo sob ótica mais atraente. Ele tentava conseguir reparações pelos prejuízos que sofreu durante a guerra, e a Yad Vashem, a organização do memorial do Holocausto judeu, em Jerusalém, estudava a possibilidade de nomeá-lo "gentio justo", uma honra concedida a pessoas que arriscaram a vida para salvar judeus.
De acordo com Crowe, as pessoas que Schindler salvou aumentaram o mito em torno dele, "porque o adoravam e o protegiam".
Ninguém põe em dúvida o fato de Schindler, nascido na então Áustria-Hungria, mas de etnia alemã, ter sido um herói moral. As revelações apenas acrescentam complexidade e profundidade a sua história.
Sabe-se há muito tempo que Schindler trabalhou para a contra-inteligência alemã no final dos anos 1930, como espião, mas ele tentou retratar essas atividades como tendo sido menos importantes do que foram. No entanto, Crowe disse que os arquivos da polícia secreta tcheca se referem a Schindler como "um espião de grande calibre, um tipo especialmente perigoso". Crowe também disse que Schindler comprometeu a segurança tcheco-eslovaca antes da invasão nazista e foi preso. Mais tarde, o governo tcheco-eslovaco tentou processá-lo por crimes de guerra. Schindler também foi o chefe "de facto" de uma unidade que planejou a invasão nazista da Polônia.
Schindler era um homem alto, charmoso, mulherengo e beberrão, como foi retratado no livro e no filme. Mas Crowe disse que ele também teve dois filhos ilegítimos, aos quais não dava atenção.
Também houve rumores, mencionados brevemente no livro e no filme, segundo os quais, quando Schindler se mudou para Cracóvia, em 1939, para tirar proveito da invasão nazista, ele teria roubado bens e ordenado o espancamento de judeus. Embora nunca tenham sido provadas, Crowe descobriu que a Yad Vashem ficou tão preocupada com essas acusações que adiou a entrega oficial do título de "gentio justo" a Schindler até 1993. Como ele morreu em 1974, o título foi póstumo.
Existem muitos livros sobre Schindler, incluindo relatos de sobreviventes e as memórias de Emilie, mas o livro de Crowe é a primeira biografia abrangente a basear-se em registros que vieram à tona recentemente. Crowe integra o comitê de educação do Museu Memorial do Holocausto, em Washington, e é autor de uma história dos ciganos da Rússia e do Leste Europeu.
Ele considerou sem fundamento algumas cenas do filme e do livro que já fazem parte do mito de Schindler. Por exemplo, no filme Schindler é mostrado andando a cavalo com sua amante no morro Lasota, em Cracóvia, em março de 1943, e assistindo à retirada dos judeus do gueto, quando ele vê uma menininha procurando um lugar para se esconder. A cena retrata o despertar moral de Schindler, mas Crowe afirma que ela é totalmente fictícia. Ele disse que teria sido impossível ver aquela parte do gueto da colina Lasota e que Schindler nunca viu a menina em questão. A transformação moral dele se deu de maneira mais gradual, disse Crowe, e, mesmo antes da retirada dos judeus do gueto, ele já se sentia horrorizado diante dos maus-tratos impostos aos judeus.
"Steven é um homem terno e maravilhoso", disse Crowe, falando de Spielberg, "mas "A Lista de Schindler" foi um teatro representado sem precisão histórica. O filme simplifica a história de maneira quase absurda." Crowe afirmou admirar o livro de Keneally.
Este, que entrevistou 50 sobreviventes e usou os arquivos disponíveis na época para escrever seu livro, disse que é compreensível que Spielberg e o roteirista Steven Zaillian tenham tomado alguma licença dramática com alguns fatos mostrados no filme. "Acho que Spielberg se comportou com honestidade", disse o escritor. "E não deixa de mostrar Schindler como alguém ambíguo."
Para o escritor e sobrevivente do Holocausto Elie Wiesel, Crowe "nem sequer está modificando a história. Ele a tornou mais complexa. Apresentou Schindler como alguém mais humano e, também, mais extraordinário".
Depois que Schindler transferiu sua fábrica para Brunnlitz, na atual República Tcheca, um período do qual o filme trata apenas superficialmente, ele interrompeu a manufatura de armas, tanto que nenhuma chegou a ser produzida para uso dos nazistas. Ele subornava oficiais nazistas e distraía sua atenção com álcool para salvar a vida de seus trabalhadores. Thomas Keneally descreveu seu heroísmo. Em Cracóvia, disse Crowe, Schindler "podia recorrer ao mercado negro para fornecer comida e cuidados de saúde a seus trabalhadores". Mas, quando chegou a Brunnlitz, as forças russas já estavam avançando, tornando as condições mais difíceis.
"Ele arrisca a vida. Pega todo o dinheiro que ganhou em Cracóvia e gasta tudo para tentar alimentar seus judeus e mantê-los em boas condições de saúde", disse Crowe. Em um episódio conhecido como o transporte de Golleschau, que é descrito no livro mas não no filme, dois vagões de trem fechados chegaram em Brunnlitz carregados de prisioneiros judeus, alguns deles mortos de frio. Schindler e sua esposa conseguiram salvar muitos prisioneiros.
Em meio ao caos, Schindler também tentou respeitar a religião judaica, embebedando oficiais da SS para que judeus pudessem ter enterros apropriados.
Crowe disse que a única parte do filme que o irritou foi o final, no qual Schindler foge diante do avanço das tropas russas. "Os judeus são mostrados como derrotados", disse ele, "mas, na realidade, Schindler criou um grupo de guerrilheiros judeus. Eles estavam armados até os dentes e dispostos a combater até a morte." Horas depois de Schindler partir, eles enforcaram um judeu que trabalhara para os nazistas.
No filme, Schindler faz um discurso e irrompe em lágrimas porque não fez mais. Mas Crowe obteve transcrição do discurso na qual Schindler, sempre pragmático astuto, também lembrou aos judeus do quanto havia feito por eles -talvez para proteger-se contra a possibilidade de ser processado por crimes de guerra.
Depois da guerra, Schindler foi um fracasso. Ele desperdiçou dinheiro que lhe foi dado pelo Comitê Conjunto Judaico-Americano de Distribuição e se mudou para a Argentina, onde tentou criar nútrias (ratões-do-banhado). Em seguida, voltou à Alemanha e comprou uma fábrica de concreto, cujos operários o atacaram por ter salvo judeus durante a guerra. A fábrica faliu. Schindler continuou a beber e a pedir ajuda financeira a judeus que salvou. De acordo com Crowe, ele morreu por beber e fumar demais.
Mordecai Paldiel, diretor do Departamento dos Justos entre as Nações da Yad Vashem, disse que as novas revelações mostram que "mesmo pessoas que têm todas essas características são capazes de um ato grandioso e santo".
"Parece que todos nós temos um anjinho dentro de nós, apenas esperando ser autorizado a sair à superfície e se mostrar."

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Ásia: Seitas chinesas disputam fiéis à força
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.