São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2008

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Cristina enfrenta debandada de "tropa de choque social"

Grupos piqueteiros cooptados pelo ex-presidente Néstor Kirchner deixam cargos na administração e levam consigo 40 mil filiados

Dirigentes criticam o que qualificam como "desvio conservador" do casal, que passou a priorizar alianças com caciques do peronismo

THIAGO GUIMARÃES
DE BUENOS AIRES

Não bastasse um primeiro ano de gestão marcado pela retração econômica e pela queda na aprovação ao governo, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, enfrenta ainda outro problema: a debandada de setores piqueteiros.
Libres del Sur e Barrios de Pie, dois movimentos que integravam a "tropa de choque social" do governo desde Néstor Kirchner (2003-2007), anunciaram neste mês sua saída.
Seus principais dirigentes -Jorge Ceballos e Humberto Tumini- deixaram seus cargos na administração federal criticando o peso crescente do Partido Justicialista (peronista) -presidido desde maio por Néstor- dentro do governo. Levaram consigo 40 mil afiliados, dois deputados federais, representações em 20 Províncias e em 300 cidades.
"É a ponta do iceberg. Hoje há uma insatisfação profunda entre setores que apóiam o governo", disse o professor de teoria política contemporânea da Universidade de Buenos Aires, Isidoro Cheresky.
Os egressos dizem que Cristina e Néstor cometem um "desvio conservador" ao apostar em alianças com caciques peronistas da Grande Buenos Aires e com o núcleo duro do sindicalismo representado pela CGT (Confederação Geral do Trabalho). Avaliações que ecoam no primeiro escalão do governo -a ministra da Saúde, Graciela Ocaña, pediu que o "kirchnerismo volte às bases".
"Vamos armar uma coalizão à esquerda do governo, ou melhor, à esquerda do PJ", diz Tumini, 55, à Folha. Ex-presidente do Conselho Federal de Direitos Humanos, cargo criado sob medida para ele em 2006, diz que o PJ "nunca teve um papel tão destacado" na aliança governista e que o governo manifesta "debilidade política" ao se apoiar no partido.

Piqueteiros e Kirchner
O movimento piqueteiro argentino é filho do avanço da pobreza no país -que passou de 6% para 35% da população de 1980 a 2001.
Na crise de 2001/2002, a maior da história argentina, ajudam a derrubar dois governos -Fernando de la Rúa e Eduardo Duhalde- e ganham uma espécie de "poder de veto extraconstitucional" sobre a gestão federal, diz o cientista político Carlos Escudé.
Ciente desse poder, Néstor Kirchner cooptou dirigentes piqueteiros, mediante apoio a candidaturas legislativas e cessão de cargos -em junho de 2006, havia cerca de 50 na administração federal. A estratégia, aliada ao crescimento econômico "chinês" do período, ajudou a minguar os protestos.
Néstor governou boa parte de seu mandato à margem do PJ, apoiado apenas na expansão econômica e na alta aprovação popular -impulsionada por causas de apelo público como a reabertura de julgamentos contra integrantes do regime militar (1976-1983).
Já Cristina perdeu esse trunfo no conflito com o setor rural em torno do aumento de impostos, que fez sua popularidade cair à metade. Daí a aproximação com o PJ e a tentativa de reestruturação do partido.
O incômodo com o governo está presente mesmo entre piqueteiros que permanecem fiéis ao kirchnerismo. No último dia 17, na sede da Fundação de Terras e Casas, um dirigente da Província de Córdoba reclamava pedindo mais diálogo com o governo em uma plenária do movimento.
Alertado sobre a chegada da reportagem da Folha, o presidente do movimento e principal piqueteiro "oficial", Luís D'Elía, 52, demonstrou embaraço com a fala do colega e logo a interrompeu com palmas.

"Oportunismo"
Na privacidade de sua sala, D'Elía classificou a saída do Libres del Sur e do Barrios de Pie do governo como "puro oportunismo tático anti-peronista". Disse concordar com as demandas ao governo por diálogo, mas afirma que o kirchnerismo é centralizador "desde que começou".
Mas, para D'Elía, trata-se de uma "contradição de terceira ordem", que não fundamentaria seu rompimento com o governo. "A reforma agrária está parada no Brasil, mas o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] não deixou o governo Lula. Ocorre o mesmo com a gente. Entre todos os outros, este continua sendo o nosso governo."
Outro que ainda milita nas fileiras oficiais é Emilio Pérsico, titular do Movimento Evita e secretário de Relações com Organizações Sociais do PJ. Afirmou lamentar a saída de "colegas de 30 anos", mas afirmou que os governos Néstor e Cristina Kirchner foram os únicos na história recente do país que permitiram conquistas sociais.
"O peronismo é a única ferramenta que os trabalhadores têm para chegar ao Estado e ao poder", disse.


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