São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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No dia 1º de janeiro de 1959, triunfava o movimento guerrilheiro de Fidel, 72, que resiste no poder e reforma economia
Revolução Cubana, 40, deixa a ilha triste

LUIZ CAVERSAN

enviado especial a Havana

O calor dentro do velho, velhíssimo, avião russo Tupolev 154 é infernal. O aparelho encontra-se estacionado no aeroporto de Cancún, México, prestes a decolar em direção a Havana. O ar condicionado do avião não funciona com as turbinas paradas, e, por falta de dinheiro, a Cubana de Aviación não usa o equipamento oferecido pelo aeroporto.
O vôo está lotado, e a algaravia é geral: todos falam muito e alto, mas o que mais chama a atenção são as sacolas. Cada passageiro carrega várias sacolas, fora a quantidade imensa de bagagem que já foi despachada antes do embarque (até mesmo um conjunto de poltronas e sofá está acomodado no porão da aeronave).
Uma mulher senta-se ao lado e tenta se arrumar com a pacoteira. Uma sacola de plástico se rompe, e no chão do avião se espalham tubos de pasta de dente, sabonetes, desodorantes, creme de barbear, chocolates, aspirina, bandeide e mais uma variedade de produtos simples, que se compram em qualquer supermercado ou farmácia.
"São presentes para os parentes cubanos", diz ela. Preciosidades, já que na ilha em que aquele avião irá pousar, distante cerca de 300 km dos Estados Unidos, a meca mundial do consumo, sabonete, pasta de dentes e muitos outros produtos de consumo básico simplesmente não existem oficialmente.
O Tupolev decola aos trancos, e lá vamos nós para uma semana de contato direto com o socialismo real, um dos poucos redutos do comunismo no mundo.
A proposta é colher impressões. Ver, ouvir, procurar entender o que se passa na ilha hoje. Conversar com as pessoas nas ruas, observar seus hábitos no dia-a-dia. Essa a idéia que vai ser levada a cabo, tendo como pano de fundo o calor forte do último verão e todas as idiossincrasias e dificuldades por que passam os cidadãos cubanos hoje, 40 anos depois de uma revolução que não levou ao paraíso do igualitarismo e da satisfação das necessidades de toda a sociedade. Longe disso.
Como a primeira impressão é sempre a que fica, pode-se afirmar que Cuba tornou-se um país triste. O ar de melancolia e desilusão no semblante das pessoas relega para outros tempos a imagem de um povo alegre e altivo.
"Não há motivo para alegria. A gente trabalha muito e não vê nenhuma perspectiva no futuro", diz a dentista Lara. "Até quando será que isso vai durar?"
Essa é a pergunta mais recorrente que se ouve em Cuba, quando se foge dos contatos oficiais e se passa a conversar reservadamente com as pessoas sobre suas vidas, seus trabalhos e o que esperam do futuro. Descobre-se que há uma grande dúvida parada no ar.
Cuba vive um dos períodos mais complicados de sua história pós-revolução. Depois do começo daquilo que eufemisticamente os cubanos fiéis ao governo chamam de "período especial", ou seja, o fim da União Soviética (1991), e com a permanência do embargo comercial por parte dos Estados Unidos, a vida, que já não era fácil, ficou muito difícil para os 11 milhões de habitantes da ilha.
Não há mais o amparo dos soviéticos, e o que se vê hoje em Cuba é a ausência generalizada de todo tipo de produto, seja de consumo pessoal, seja para abastecer o comércio e a indústria, que estão estagnados.
Há três moedas em circulação: o peso cubano (que vale US$ 0,047), o peso de equivalência com o dólar americano (um peso é igual a um dólar, criado inicialmente para ser usado apenas pelos turistas) e o dólar propriamente dito.
O peso cubano não serve para praticamente nada. Compra as mercadorias que teoricamente o governo ofereceria para a população. Mas não há o que comprar: roupas, sapatos, eletrodomésticos, artigos de higiene e limpeza, frutas, comida nos restaurantes, praticamente tudo do que se precisa para viver está à venda em dólares, seja no mercado oficial ou no paralelo. Desde 93 não é mais crime o cubano portar dólares. E, com a falência do sistema de abastecimento público, o próprio governo acaba permitindo o surgimento de comércio nos moldes capitalistas, seja ele regulamentado ou não.
Essa está sendo a tábua de salvação pelo menos para a sociedade urbana cubana, porque, se dependesse apenas do que o governo distribui, cada cidadão iria receber um par de sapatos a cada seis meses, um sabão a cada dois meses, meio quilo de carne de vaca no mesmo período ou meio quilo de carne de porco misturada com soja a cada 15 dias.
O problema básico é que todo mundo, teoricamente, trabalha para o governo e recebe em pesos cubanos. Um engenheiro (salário dos mais altos) ganha o equivalente a US$ 40 por mês, um jornalista, US$ 30, um sapateiro, US$ 8, uma faxineira, US$ 5, um oficial das Forças Armadas, US$ 25. Só para poder fazer algum tipo de comparação, entre US$ 18 e US$ 20 é quanto custa uma única refeição num restaurante de hotel ou num "paladar", estabelecimento particular permitido pelo governo.
Assim é que o verbo "resolver" tornou-se a palavra de ordem em Cuba. Embora tenha o mesmo sentido em português e espanhol, funciona mais como o nosso popular "se virar". Todo mundo procura resolver o salário, resolver a comida, produtos de limpeza, as roupas, os sapatos...
Resolve-se arrumando "bicos" que possam gerar rendimento em dólares, atuando em alguma atividade ligada ao turismo, onde o dinheiro americano circula mais, ou na clandestinidade da venda de produtos de contrabando.
Se um mecânico conserta a geladeira de uma dona de casa, cobra em dólar. E esse dólar pode ter chegado àquela residência porque o marido trabalha no turismo e recebe gorjetas em moeda norte-americano ou vende charutos no mercado negro, por exemplo.
Com o dólar na mão, foge-se da escassez generalizada, que também atinge os serviços básicos, outrora orgulho dos cubanos.
Há bairros centrais em Havana onde o esgoto corre a céu aberto, com água nas torneiras apenas alguns dias da semana e luz elétrica algumas horas por dia.
Naquela que até hoje é considerada uma das principais conquistas da Revolução Cubana, existem escolas e serviço de saúde gratuitos para todos os habitantes. No primeiro caso, apesar de haver sérias restrições quanto ao conteúdo ideológico na formação do estudante, trata-se pelo menos de uma maneira eficiente de tirar as crianças das ruas.
Praticamente inexistem menores abandonados em Havana. Todos os que são encontrados pelas ruas têm família e casa, mesmo os que pedem dinheiro a qualquer um com cara de estrangeiro -assim como os adultos tentam vender seus charutos ou o rum.
Com relação ao segundo caso, o da saúde pública, os indicadores internacionais demonstram que o atendimento existe para todos, mas precariedade é uma realidade na maioria dos hospitais, postos de saúde ou de serviço odontológico, segundo vários depoimentos colhidos com usuários do sistema.
A falta de medicamentos e equipamentos -sempre oficialmente atribuída ao bloqueio norte-americano- é o problema mais sensível, mas a insatisfação dos servidores por conta do salário reduzido também contribui para a deterioração do atendimento. O que dá margem ao surgimento da corrupção e contrabando de remédios.
Existem, e são famosos, os centro de excelência científica em Cuba, que sobrevivem apesar da falta de recursos generalizada.
Esses centros sobrevivem principalmente graças ao atendimento de enfermos estrangeiros e à venda de seus produtos para países que ignoram o embargo comercial imposto pelos EUA. Entre os mais conhecidos estão o centro clínico que trata do vitiligo -doença que causa a despigmentação da pele- e o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, onde são fabricados diversos tipos de vacina -o Brasil compra ali vacina contra hepatite B. Esse último centro vem desenvolvendo um avançado estudo independente para a elaboração de uma vacina contra a Aids.
Aliás, a questão da Aids revela uma faceta interessante do regime vigente na ilha. Ao mesmo tempo em que se empenha em desenvolver uma vacina, o governo afirma que a Aids não é um problema sério em Cuba: números oficiais dizem que há apenas 14,7 soropositivos por milhão de habitantes (no Brasil seriam 287 por milhão). Hoje em dia, porém, há campanhas de alerta à população e distribuição (precária) de preservativos aos grupos de risco. Um avanço, sem dúvida, num país que até poucos anos atrás confinava os doentes de Aids em sanatórios, onde ficavam literalmente presos.
Esse elemento preconceituoso do regime se revela também em relação aos homossexuais, que são no máximo tolerados. Afinal, eles não combinariam com os ideais de virilidade e bravura apregoados há 40 anos pela Revolução e já foram também detidos em campos de prisioneiros. Atualmente a situação é mais branda, mas os homossexuais ainda sofrem discriminação na hora de ascender em sua vida profissional.
A questão da opção sexual dos cidadãos acabou levando à constatação da existência de uma figura que deve ocupar muito espaço em Cuba no futuro próximo, e há muita gente torcendo para isso. Trata-se de Miguel Diaz Camel, secretário-geral do Partido Comunista (principal cargo político) da Província de Villa Clara. Camel está colocando em prática uma bem-sucedida política liberal em relação aos costumes.
Ele é considerado, mesmo dentro do partido, liderança jovem (35 anos) e promissora. Em sua administração não há vetos aos homossexuais, e os controles sociais são menos rígidos.
Mas essa não é a regra, e o partido é uma presença constante na vida dos cubanos, embora também já comece a se adaptar aos novos tempos. Ninguém pode desobedecer às regras impostas pelo Estado, e há funcionários e voluntários sempre prontos a delatar os faltosos. No Código Penal de Cuba há um capítulo denominado "delito contra a segurança do Estado". Divulgar idéias contra a revolução ou o governo ou discutir em público os ditames do regime podem ser considerados atos de subversão. O inconformado corre o risco de passar oito anos na cadeia.
A estrutura dos comitês revolucionários dá sustentação a esse Estado policial, mas nem ele está funcionando como deveria. Veja o caso de Natalia, inspetora de quarteirão do bairro de El Vedado, onde muita gente subloca quartos para outras famílias ou turistas, sem autorização do governo. Natalia deveria denunciar seus vizinhos, que deixam de pagar a taxa de US$ 250 para poder explorar esse comércio, mas não o faz. Ela também aluga quartos clandestinamente.
Bastam alguns dias em Havana para constatar logo que uma das grandes dificuldades em Cuba é o acesso à informação, também monopolizada pelo governo. TVs (duas), rádios (cerca de 150) e jornais (um diário e quatro semanais) servem exclusivamente à causa da Revolução e de seus próceres.
Na TV, quase toda a programação é propagandística ou "educativa", todo o noticiário é pró-governo e contra os EUA e o mundo capitalista.
Um jornal como o "Granma", por exemplo, que é o principal da ilha, gasta diariamente pelo menos 1 de suas 6 páginas para relembrar feitos revolucionários de 20, 30 anos atrás.
Seria leviano afirmar que a ilha de Fidel Castro está alijada da rede internacional de computadores, porque há, sim, um servidor da Internet em Cuba. Mas, para poder acessá-lo, o cidadão terá de obter autorização de cinco ministérios (Comunicações, Interior, Ciências, Indústria Mecânica e Justiça). Poucos conseguem romper a barreira da burocracia estatal.
Não há como deixar de notar em Cuba a peculiaridade dos meios de transporte. O veículo mais comum nas ruas é um misto de caminhão e ônibus, chamado "camelo", que se constitui no principal meio de transporte urbano. A passagem custa pouco (20 centavos de peso cubano), e ele carrega até 300 pessoas. Demora para chegar, é lento e está sempre superlotado.
Para fugir dos "camelos", os cubanos se "resolvem" como podem. Os operários das fábricas, por exemplo, podem ir para o trabalho na carroceria de caminhões.
Quem tem carro particular -em geral modelos americanos dos anos 50, conservados na base do improviso- o transforma em lotação, cobrando em dólar. Quem não tem paga o transporte ou anda de bicicleta, ou qualquer outro meio disponível.
Os táxis são um privilégio para poucos, pois a bandeirada custa a partir de US$ 2.
Em contraste com os demais servidores públicos, os taxistas oficiais em geral são felizes, porque vivem agregados ao turismo e ganham gorjetas em dólares. "É preciso muito conhecimento, influência e até pagar um bom dinheiro para conseguir uma vaga de taxista", afirma Fernando, arquiteto que abandonou a profissão em que recebia US$ 25 por mês para ganhar, no táxi, cerca de US$ 15 de gorjeta por dia.
Em Havana não há população de rua. Seja nos conjuntos habitacionais tipo "colméia" dos bairros mais afastados, seja nos casarões dos bairros ex-chiques próximos ao centro, todos têm onde morar. O problema são as condições. Um casarão de seis cômodos pode abrigar até seis famílias, cada uma vivendo num quarto com divisórias e compartilhando, todas, as áreas comuns, como cozinhas e banheiros.



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