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AIDS NA ÁFRICA
Cansado de enterrar crianças, um padre do Quênia ignora a lei de patentes e importa genéricos da Índia
Orfanato desafia gigantes farmacêuticas
DECLAN WALSH
DO "THE INDEPENDENT", EM NAIRÓBI
Dickson e Georgina passaram o
último ano vivendo à beira de um
frágil precipício, entre a vida e a
morte. Georgina, 4, tremia de febre causada por pneumonia e não
tinha forças para ficar em pé. O
rosto de Dickson era tão recoberto de lesões, bolhas e rachaduras
que a maioria das pessoas não tinha coragem de olhar para ele.
Mas, nos últimos seis meses,
houve uma transformação milagrosa. Georgina já pula dos braços
da babá e corre solta. No rosto de
Dickson, quase completamente
limpo de lesões, um sorriso irresistível tomou o lugar das chagas
abertas da infecção viral.
A diferença foi provocada por
um caro (US$ 9) coquetel diário
de medicamentos ocidentais de
combate à Aids que vem sendo
administrado às duas crianças
desde agosto. O orfanato de
Nyumbani, em Nairóbi (Quênia),
onde elas vivem, resolveu enfrentar os gigantes farmacêuticos
mundiais num esforço para levar
medicamentos salvadores de vidas a milhões de outros africanos
que estão morrendo de Aids.
O padre Angelo D'Agostino, diretor do orfanato, disse: "Estou
farto de fazer enterros. Decidimos
tentar outro caminho". O orfanato vai desafiar as leis internacionais de patentes e importar da Índia um novo remédio contra a
Aids. O medicamento é o mesmo.
A diferença está no preço: enquanto as drogas ocidentais custam US$ 3.000 por ano, o medicamento genérico produzido pela
Cipla, de Bombaim, sai por apenas US$ 350.
O orfanato pode tratar apenas
de seus 12 piores casos. Os genéricos poderiam transformar as vidas de suas 71 crianças. Os casos
de pneumonia diminuiriam, as
peles rachadas sarariam. E a devastação provocada pela Aids poderia ser abrandada e desacelerada por até 12 anos.
O impacto sobre o resto do
mundo seria infinitamente maior.
Cerca de 25 milhões de africanos
são portadores do HIV -três
quartos do total mundial de portadores-, mas apenas 0,01% pode pagar pelas drogas ocidentais.
Os medicamentos genéricos produzidos na Índia, no Brasil ou na
Tailândia custam uma fração do
preço e poderiam revolucionar o
tratamento da Aids para muitas
pessoas.
Nunca antes a situação foi tão
clara: a diferença entre vida e
morte para milhões de pessoas
depende de quem cola o rótulo no
vidro do remédio. Mas existe um
obstáculo enorme. O orfanato de
Nairóbi está comprando uma disputa com as empresas farmacêuticas que investiram bastante dinheiro para garantir que os medicamentos genéricos nunca vissem
a luz do dia.
Em maio passado, irritadas com
as críticas, a Glaxo e outras grandes empresas farmacêuticas prometeram reduzir seus preços em
85%. A Glaxo prometeu, na semana passada, que irá facilitar o acesso a remédios de combate ao HIV
e à Aids nos países em desenvolvimento, fornecendo seus produtos
com grandes descontos a organizações sem fins lucrativos.
Mas os profissionais que trabalham com soropositivos dizem
que não dá mais para esperar. "A
verdade é que não aguentamos
mais. Existe um limite para quanto tempo se consegue ficar parado, vendo as pessoas morrerem.
Se tivermos que infringir a lei para
conseguir os remédios, é isso o
que vamos fazer", disse o médico
Chris Ouma.
As gigantes farmacêuticas não
precisariam se preocupar muito
com a África. Afinal, o continente
inteiro responde por apenas 1%
de suas vendas. Embora africanos
frequentemente sejam usados em
testes clínicos de medicamentos
que combatem a Aids, eles raramente têm condições financeiras
para comprá-los.
Mas as empresas temem que o
exemplo dado pela África possa
dar idéias "inconvenientes" a outros países pobres. Ou, quem sabe, medicamentos africanos baratos poderiam até mesmo chegar
ao Ocidente, onde os pacientes aidéticos pagam entre US$ 10 mil e
US$ 15 mil por ano por seus tratamentos contra a doença.
Uma tentativa feita por Uganda
e Gana de importar da Índia uma
versão genérica da droga Combivir levou a Glaxo a enviar uma
carta pouco amigável à Cipla,
lembrando que a venda de genéricos é "uma infração de nossos direitos exclusivos de patente".
As empresas ocidentais também procuram garantir que a
África se paute pelo Trips, um
acordo da Organização Mundial
do Comércio (OMC) que protege
os direitos de patente. E, nos EUA,
a indústria farmacêutica gastou
inusitados US$ 17 milhões para
apoiar a campanha presidencial
de George W. Bush. No início do
mês o governo Bush enviou solicitação à OMC para que impeça o
Brasil de produzir genéricos.
Em Nyumbani, desde agosto
passado, quando o novo programa do coquetel de drogas entrou
em vigor, nenhuma criança foi
enterrada. Mas o tempo está se esgotando. E o dinheiro, também.
Se as empresas farmacêuticas impedirem os genéricos de chegar
ao Quênia, em pouco tempo o pequeno cemitério do orfanato estará cheio outra vez.
Tradução de Clara Allain
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