São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 2001

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AIDS NA ÁFRICA

Cansado de enterrar crianças, um padre do Quênia ignora a lei de patentes e importa genéricos da Índia

Orfanato desafia gigantes farmacêuticas

DECLAN WALSH
DO "THE INDEPENDENT", EM NAIRÓBI

Dickson e Georgina passaram o último ano vivendo à beira de um frágil precipício, entre a vida e a morte. Georgina, 4, tremia de febre causada por pneumonia e não tinha forças para ficar em pé. O rosto de Dickson era tão recoberto de lesões, bolhas e rachaduras que a maioria das pessoas não tinha coragem de olhar para ele.
Mas, nos últimos seis meses, houve uma transformação milagrosa. Georgina já pula dos braços da babá e corre solta. No rosto de Dickson, quase completamente limpo de lesões, um sorriso irresistível tomou o lugar das chagas abertas da infecção viral.
A diferença foi provocada por um caro (US$ 9) coquetel diário de medicamentos ocidentais de combate à Aids que vem sendo administrado às duas crianças desde agosto. O orfanato de Nyumbani, em Nairóbi (Quênia), onde elas vivem, resolveu enfrentar os gigantes farmacêuticos mundiais num esforço para levar medicamentos salvadores de vidas a milhões de outros africanos que estão morrendo de Aids.
O padre Angelo D'Agostino, diretor do orfanato, disse: "Estou farto de fazer enterros. Decidimos tentar outro caminho". O orfanato vai desafiar as leis internacionais de patentes e importar da Índia um novo remédio contra a Aids. O medicamento é o mesmo. A diferença está no preço: enquanto as drogas ocidentais custam US$ 3.000 por ano, o medicamento genérico produzido pela Cipla, de Bombaim, sai por apenas US$ 350.
O orfanato pode tratar apenas de seus 12 piores casos. Os genéricos poderiam transformar as vidas de suas 71 crianças. Os casos de pneumonia diminuiriam, as peles rachadas sarariam. E a devastação provocada pela Aids poderia ser abrandada e desacelerada por até 12 anos.
O impacto sobre o resto do mundo seria infinitamente maior. Cerca de 25 milhões de africanos são portadores do HIV -três quartos do total mundial de portadores-, mas apenas 0,01% pode pagar pelas drogas ocidentais. Os medicamentos genéricos produzidos na Índia, no Brasil ou na Tailândia custam uma fração do preço e poderiam revolucionar o tratamento da Aids para muitas pessoas.
Nunca antes a situação foi tão clara: a diferença entre vida e morte para milhões de pessoas depende de quem cola o rótulo no vidro do remédio. Mas existe um obstáculo enorme. O orfanato de Nairóbi está comprando uma disputa com as empresas farmacêuticas que investiram bastante dinheiro para garantir que os medicamentos genéricos nunca vissem a luz do dia.
Em maio passado, irritadas com as críticas, a Glaxo e outras grandes empresas farmacêuticas prometeram reduzir seus preços em 85%. A Glaxo prometeu, na semana passada, que irá facilitar o acesso a remédios de combate ao HIV e à Aids nos países em desenvolvimento, fornecendo seus produtos com grandes descontos a organizações sem fins lucrativos.
Mas os profissionais que trabalham com soropositivos dizem que não dá mais para esperar. "A verdade é que não aguentamos mais. Existe um limite para quanto tempo se consegue ficar parado, vendo as pessoas morrerem. Se tivermos que infringir a lei para conseguir os remédios, é isso o que vamos fazer", disse o médico Chris Ouma.
As gigantes farmacêuticas não precisariam se preocupar muito com a África. Afinal, o continente inteiro responde por apenas 1% de suas vendas. Embora africanos frequentemente sejam usados em testes clínicos de medicamentos que combatem a Aids, eles raramente têm condições financeiras para comprá-los.
Mas as empresas temem que o exemplo dado pela África possa dar idéias "inconvenientes" a outros países pobres. Ou, quem sabe, medicamentos africanos baratos poderiam até mesmo chegar ao Ocidente, onde os pacientes aidéticos pagam entre US$ 10 mil e US$ 15 mil por ano por seus tratamentos contra a doença.
Uma tentativa feita por Uganda e Gana de importar da Índia uma versão genérica da droga Combivir levou a Glaxo a enviar uma carta pouco amigável à Cipla, lembrando que a venda de genéricos é "uma infração de nossos direitos exclusivos de patente".
As empresas ocidentais também procuram garantir que a África se paute pelo Trips, um acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC) que protege os direitos de patente. E, nos EUA, a indústria farmacêutica gastou inusitados US$ 17 milhões para apoiar a campanha presidencial de George W. Bush. No início do mês o governo Bush enviou solicitação à OMC para que impeça o Brasil de produzir genéricos.
Em Nyumbani, desde agosto passado, quando o novo programa do coquetel de drogas entrou em vigor, nenhuma criança foi enterrada. Mas o tempo está se esgotando. E o dinheiro, também. Se as empresas farmacêuticas impedirem os genéricos de chegar ao Quênia, em pouco tempo o pequeno cemitério do orfanato estará cheio outra vez.


Tradução de Clara Allain


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