São Paulo, sábado, 28 de março de 1998

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INFÂNCIA ROUBADA
Vindos do Marrocos, menores eram levados ilegalmente à cidade de Modena e forçados a mendigar
Polícia liberta crianças escravas na Itália

GIANCARLO SUMMA
especial para a Folha, de Roma

A Guarda Municipal da cidade de Modena, no norte da Itália, libertou cerca de 50 crianças marroquinas, entre 10 e 14 anos de idade, que estavam sendo mantidas em regime de cativeiro.
As crianças eram obrigadas a pedir esmola ou a ficar nos faróis para lavar pára-brisas dos carros em troca de pequenas gorjetas. À noite, tinham de entregar o dinheiro e eram trancadas num chiqueiro abandonado, na periferia.
A polícia prendeu o marroquino Abdel Aziz Errefiai, 40, acusado de chefiar a quadrilha que explorava as crianças. Outros três homens foram denunciados. Errefiai foi indiciado pelo procurador do Tribunal de Modena, Giuseppe Tibis, e será julgado por exploração de menores e "redução à escravidão".
"Na Europa, é um crime da Idade Média. Nunca achei que um dia tivesse que enfrentar um caso como este", declarou Tibis.
As crianças, quase todos meninos, são da região de Beni Mellal, uma das mais pobres do Marrocos, norte da África. As famílias pagaram até US$ 5.000 para que os seus filhos pudessem sair do país, acreditando que na Europa eles passariam a ter uma vida melhor.
Os meninos foram entregues a uma das muitas organizações que lucram transportando milhares de imigrantes clandestinos. O trajeto é sempre o mesmo. De barco, os imigrantes deixam a África e cruzam o estreito de Gibraltar, até chegarem a território espanhol. De lá, seguem de ônibus ou de trem até a França, a Itália e a Alemanha.
Para as crianças marroquinas, o sonho do Primeiro Mundo acabou em Milão. Lá, elas foram vendidos à quadrilha chefiada por Aziz Errefiai e levados até Modena. Em lugar do trabalho, ganharam esponjas e baldes para ficarem nas esquinas. À noite, os integrantes da quadrilha recolhiam os meninos e cobravam o dinheiro.
Modena é uma cidade rica, não há muitos pedintes pelas ruas. Cada criança conseguia juntar até 100 mil liras italianas (pouco mais de US$ 50) por dia. Mas, para elas, só ficavam uns trocados.
Para descansar, após trabalharem 12 horas, as crianças eram levadas para um chiqueiro abandonado, ao lado da estrada que une Modena a Maranello, onde se fabricam os luxuosos carros da Ferrari. A construção está meio desmoronada, é gelada no inverno e não tem água nem luz elétrica. As portas eram trancadas a cadeado para que não fugissem.
A investigação que levou à libertação das crianças durou vários meses. "Há quase um ano, começamos a perceber que havia cada vez mais crianças lavando pára-brisas nas esquinas da cidade. Então, pedi que a Guarda Municipal verificasse o que estava acontecendo", explicou à Folha Alberto Caldana, vice-prefeito.
Modena tem 180 mil habitantes, sendo 20 mil imigrantes regulares e cerca de mil clandestinos. É um percentual de estrangeiros alto para padrões italianos: no país há só 1,2 milhão de imigrantes, para uma população de 56 milhões.
Ainda assim, a inserção dos estrangeiros é menos problemática que em outras cidades. Modena, na região Emília-Romanha, é administrada pela esquerda desde o fim da Segunda Guerra e é famosa a eficiência dos serviços sociais.
"Se fosse outra cidade, provavelmente a situação das crianças marroquinas teria passado despercebida", acrescentou o vice-prefeito. "Aqui, ainda é um fato excepcional, e tomamos as providências necessárias."
Das 47 crianças libertadas, 22 vivem agora em abrigos religiosos, conveniados com a prefeitura. Estudam -muitos nunca tinham ido a uma escola. Os mais velhos estão trabalhando numa empresa de peças elétricas. Dos outros, cinco decidiram voltar para o Marrocos, e 20 sumiram.



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