São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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Segundo turno legitima extrema direita, diz analista

DE PARIS

Para o sociólogo e cientista político Jean Viard, o voto dado a Jean-Marie Le Pen é o resultado de uma série de lutas na sociedade francesa: entre os jovens que fracassaram nos estudos e os que estão nas escolas, entre os trabalhadores sem formação e os imigrantes, entre os que temem a globalização e o fim das fronteiras européias e os que têm recursos para enfrentar as mudanças e o fim das identidades nacionais.
Segundo Viard, a novidade das últimas eleições francesas não foi o número de votos dados a Le Pen, mas o fato de ele ter ganho legitimidade. "De agora em diante, muito mais gente vai reivindicar que é da Frente Nacional de agora. Elas dirão: "O interdito antifascista foi suspenso'", afirma ele, na entrevista abaixo.
Viard é diretor de estudos no Centro Nacional da Pesquisa Científica, em Paris, e autor, entre outros livros, de "Por que os Trabalhadores Votam na Frente Nacional e Como Reconquistá-los" (ed. Seuil), em que analisou as relações entre a destruição da cultura proletária na França e a ascensão do voto na extrema direita. (ALCINO LEITE NETO)

Folha - Como o sr. descreveria o eleitorado de Le Pen?
Jean Viard -
É um eleitorado forte entre os jovens [20%", os trabalhadores [20%] e sobretudo os desempregados [30%]. É também dominantemente masculino. Ele reproduz um fenômeno que se constata no mundo mais pobre, inclusive no islã, em reação ao fim de um modelo de cultura baseado no homem forte. Promove o jovem enérgico como alguém que pode encontrar um trabalho, dominar a mulher e fazer política a bordoadas.
Entre os operários, a grande maioria não é eleitora de Le Pen. Apenas 1 em 5 votou nele. Mas é claro que as suas idéias podem se desenvolver no meio operário, principalmente quando Le Pen fala em dar prioridade de trabalho ao francês, porque a competência de um imigrado "forte" e a de um francês que falhou nos estudos é a mesma. Eu e você não estamos em concorrência com os imigrantes, mas os operários em geral estão.

Folha - Por que há um número significativo de jovens?
Viard -
Porque existe justamente uma cisão entre a juventude que estuda e vai obter o seu diploma e aquela que fracassou nos estudos. Esta vive nos mesmos bairros que os imigrantes, para os quais o simples fato de terem vindo do sul para o norte representa uma ascensão, mesmo que eles sejam maltratados aqui. Os jovens que não conseguiram fazer seus estudos se encontram, por sua vez, numa situação que é a de só poderem subir na vida dentro da própria sociedade francesa, que, contudo, não promove a progressão social.
Os jovens que se manifestam neste momento contra a extrema direita estão construindo uma geração anti-Le Pen. É uma coisa importante, mas são sobretudo pessoas escolarizadas, que estão nas universidades e nos colégios e vão encontrar trabalho ao final de seus estudos. Os que fracassaram nos estudos permanecem sempre com mais e mais dificuldades.

Folha - Por que a votação de Le Pen é tão grande no sul da França?
Viard -
Não apenas no sul, mas ao longo das fronteiras. É mais forte nas regiões traumatizadas -seja pela Alemanha na Segunda Guerra, como a Alsácia, seja pela Guerra da Argélia, como o sul. Nessas regiões os problemas de identidade são maiores.
No sul, a verdadeira questão é a seguinte: será que nos distinguimos de outras cidades do Mediterrâneo [do norte da África]? Na Alsácia, onde a Frente Nacional é mais forte, a questão é: se deixamos de ter fronteiras com a Alemanha [por causa da União Européia], o que é ser alsaciano?

Folha - A que fatores o sr. atribui o crescimento de votos em Le Pen nesta eleição, especificamente?
Viard -
O voto lepenista, ele mesmo, aumentou pouco. Le Pen teve cerca de 300 mil votos a mais do que da última vez em que concorreu às eleições presidenciais. E se passaram muitos anos! Se juntarmos os votos que ele obteve agora aos do outro candidato da extrema direita, Bruno Mégret, chegamos a quase 6 milhões, o que é muito.
Mas é o mesmo total que obteríamos em 1995, reunidos os votos de Le Pen e os de Philippe de Villiers, candidato da direita católica. Então, o fenômeno político novo não é que a Frente Nacional tenha tido grande número de votos, mesmo se ela ganhou um pouco mais. Os verdadeiros fatos novos são, primeiro, a derrocada dos outros partidos políticos e, segundo, que Le Pen tenha obtido legitimidade, do ponto de vista simbólico.
A esquerda obteve no conjunto 42% dos votos, mais do que em 1995, mas eles se dispersaram entre trotskistas, chevenementistas etc. E Le Pen não obteve tantos votos assim. Ele ganhará mais no segundo turno, pois vai dispor da televisão para impor suas idéias, uma tribuna que nunca teve, e se tornou um político legítimo, porque foi para o segundo turno das eleições presidenciais. Quer dizer, de agora em diante muito mais gente vai reivindicar que é da Frente Nacional.

Folha - As pessoas deixarão de ter vergonha de aderir à Frente Nacional ou confessar seu voto, como ocorria?
Viard -
Exatamente. Elas vão dizer: "O interdito antifascista foi suspenso". Nos países da Europa, depois da Segunda Guerra, votar na extrema direita se transformou num pecado capital. Essa situação existiu até os anos 80. No começo daqueles anos, quando a esquerda subiu ao poder, uma parte da direita começou a votar em Le Pen. Com isso, eles já começavam a suspender um pouco esse interdito.

Folha - A Frente Nacional pode sobreviver após Le Pen, que já tem 74 anos?
Viard -
Acho que sim. Penso que ela seja parte de um componente da vida política de todos os Estados da Europa. E assim será até que a Europa seja uma nova força política. As nações se abriram em termos políticos, mas ainda não se construiu uma Europa política. As pessoas se perguntam: quem é o chefe na Europa, quem tem o poder de dizer, por exemplo, que os europeus não querem que haja guerra no Oriente Médio? Ninguém. Então elas têm a impressão de estarem perdidas.
A política nacional perdeu sua função de proteção, que a política européia por sua vez ainda não encontrou. Os europeus parecem estar ao deus-dará numa sociedade que muda, em que há guerras no sul, massacre na Argélia, a compra de nossas empresas pelos americanos -e não há nada a fazer. Então, as pessoas têm medo. Se elas escutam discursos sobre segurança, isso funciona.


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