São Paulo, domingo, 28 de abril de 2002

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Intelectualidade francesa se omite em meio à crise política

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A crise aberta na França pela classificação de Jean-Marie Le Pen para o segundo turno presidencial foi marcada pela ausência de tomada de posição de influentes intelectuais.
Não alertaram para o perigo que a sociedade corria e, em seguida, não reagiram para explicar as razões do susto que os franceses acabavam de pregar em si mesmos. Em verdade o intelectual francês é um gênero em extinção, ao menos o intelectual que funcionou no passado como fonte de influência política, como um fornecedor de modelos para que a massa escolarizada de cidadãos pudesse pensar o social.
O último que sintetizou esse perfil foi Pierre Bourdieu (1930-2002). Sua morte, em janeiro último, provavelmente pôs fim a um ciclo de um século e meio em que o pensamento engajado foi um gênero de forte consumo interno e também de ampla exportação.
Maio de 68, movimento que mergulhou a França numa greve geral e instituiu formas libertárias de atuar politicamente, foi também o momento do confronto entre gigantes, o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-80) contra o então ministro da Cultura, André Malraux (1901-76).
Durante a Guerra Fria a discussão social não ficava restrita a círculos de militares, diplomatas ou economistas. Os intelectuais da esquerda tinham como adversários pessoas com o peso de Raymond Aron (1905-83).
Em outros momentos traumáticos da história da França, como a Guerra da Argélia, no final dos anos 50, a sociedade não se dividia de modo espontâneo. Coube aos intelectuais difundir a idéia de que o colonialismo não era apenas uma postura economicamente generosa e civilizadora. Eles influenciavam discussões partidárias, ditavam padrões de um comportamento crítico para a mídia.
Era como se eles fossem os descendentes diretos de Émile Zola (1840-1902), escritor que amargou o exílio por defender publicamente o capitão judeu Alfred Dreyfus, acusado de espionagem em favor da Alemanha, em meio a um complô liderado por oficiais anti-semitas do Exército.
Alguns personagens de destaque na mídia se manifestaram nos últimos dias. Bernard-Henri Lévy e André Glucksman, ex-marxistas que nos anos 70 se voltaram para o pensamento liberal (o dos "novos filósofos"), lançaram um apelo direcionado aos eleitores de esquerda e favorável ao voto em Chirac no próximo domingo.
Mas são personagens menores. Não têm no meio acadêmico e editorial o peso de Jean-François Lyotard (1924-98), de Gilles Deleuze (1925-95) ou sobretudo de Michel Foucault (1926-84).
Este último representou na França o exemplo do "maître-à-penser", alguém de influência comparável à de Theodor Adorno (1903-69) na Alemanha. Não por fornecer respostas a toda e qualquer pergunta, mas por delimitar um território ético e teórico a partir do qual muitas respostas poderiam ser elaboradas.
Com a obstrução dos canais pelos quais o intelectual dialogava com a classe média e enriquecia sua forma de pensar, os assuntos se compartimentaram. Política virou coisa de políticos, regulamentação virou coisa da União Européia e modelo teórico virou coisa de universitários.


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