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Entrevista da 2ª
EDGAR MORIN
FILÓSOFO
Mal-estar de Maio de 68 é ainda mais profundo hoje
Para o pensador francês, desesperança e descrença
no progresso trazidas pelos anos 90 desamparam atual geração e a empurram para um presente sem sentido
O FRANCÊS Edgar Morin é um dos últimos
grandes pensadores vivos. Filósofo, historiador e sociólogo, aos 87 anos se empolga
ao falar dos movimentos estudantis
atuais e diz que uma das maiores conquistas de Maio
de 68 foi a afirmação da adolescência como entidade
social autônoma. Mas o intelectual acredita que a crise moral que provocou o levante de 40 anos atrás é hoje muito mais grave porque o mundo, segundo ele,
perdeu totalmente a crença num futuro melhor.
SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE
Edgar Morin passou boa parte de sua trajetória intelectual
defendendo a transdisciplinaridade, a idéia segundo a qual as
ciências são complementares e
o conhecimento só é válido
quando colocado sob a luz da
abrangência.
Convidado a abrir a segunda
edição do ciclo de palestras
"Fronteiras do Pensamento
Braskem-Copesul", em Porto
Alegre, Morin avisou que o tema de sua intervenção seria
"1968-2008: o mundo que eu vi
e vivi". Foi uma oportuna maneira de analisar os rumos da
humanidade às vésperas do 40º
aniversário da revolta francesa
de Maio de 1968, o evento estudantil e operário que ultrapassou fronteiras, disseminando
os valores que até hoje norteiam boa parte da modernidade ocidental.
Horas antes da palestra, no
último dia 14, Morin conversou
por 40 minutos com a Folha no
saguão de um luxuoso hotel da
capital gaúcha. Os gestos frágeis e a voz definhante não
condizem com o discurso vibrante e apaixonadamente engajado de um homem que dedicou a vida ao entendimento
humano. Eis os principais trechos da entrevista.
FOLHA - Quarenta anos depois, o
que ficou dos acontecimentos de
Maio de 68?
EDGAR MORIN - 1968 foi, antes de
mais nada, um ano de revolta
estudantil e juvenil, numa onda
que atingiu países de naturezas
sociais e estruturas tão diferentes como Egito, EUA, Polônia...
O denominador comum é uma
revolta contra a autoridade do
Estado e da família. A figura do
pai de família perdeu importância, dando início a uma era
de maior liberdade na relação
entre pais e filhos.
A revolta teve um caráter
mais marcante nos países ocidentais desenvolvidos. Teóricos achavam que vivíamos numa sociedade que resolveria os
problemas humanos mais fundamentais. E, de repente, percebeu-se que havia uma insatisfação na parte mais privilegiada dessa sociedade, que é a
juventude estudante.
Jovens de classes privilegiadas que desfrutavam de bens
materiais preferiram buscar
uma vida comunitária, num sinal de que o consumismo da sociedade ocidental não resolvia
os problemas e aspirações humanas.
Muitos desses jovens trocaram a cidade pela vida com as
cabras, em busca de felicidade.
Esses grupos não duraram,
porque não conseguiram resolver os problemas e conflitos
-só perduram comunidades
que têm o cimento religioso.
Mas o importante é que houve um processo de auto-afirmação da adolescência como entidade social e cultural. O rock,
muito além da música, consiste
em agrupamentos de jovens. É
uma maneira de se vestir e se
comportar. É a autonomização
da adolescência, que se afirma
por oposição ao mundo adulto
dos professores e pais.
Depois disso, a poeira baixou
e tudo pareceu voltar ao que era
antes. Mas houve mudanças,
sim. Foi depois de 68 que os homossexuais e as minorias étnicas se afirmaram e que o novo
feminismo se desenvolveu. A
imprensa feminina francesa
pré-68 dizia: "sejam bonitas e
façam uma boa comidinha para
agradar aos seus maridinhos".
Depois de 68, essa mesma imprensa passou outro recado:
"vocês estão ficando velhas,
seus filhos foram embora e seus
maridos as traem, então resistam". Foi uma verdadeira crise
da idéia de felicidade, que é a
grande mitologia da sociedade
ocidental.
FOLHA - Um levante semelhante
seria possível hoje em dia?
MORIN - Fatos históricos dificilmente se repetem, mas eu
me pergunto se a comemoração de Maio de 68 não vai estimular jovens a seguirem o mesmo caminho. Na França, houve
recentemente uma pseudo-reforma do ensino que despertou
mais uma vez movimentos estudantis consideráveis. Claro,
não tem nada a ver com Maio
de 68, mas é alguma coisa.
Hoje em dia, movimentos estudantis se generalizam rapidamente e prosseguem mesmo
quando o governo satisfaz os
seus pedidos. É a alegria de estar juntos na rua, de desafiar os
professores e a polícia. Até
quando as reivindicações são
ridículas, o fenômeno é importante, pois permite ao jovem
tornar-se cidadão, escapando
assim da crescente tendência
ao apolitismo.
FOLHA - Mas o mal-estar que causou Maio de 68 permanece...
MORIN - Não só permanece, como agravou-se. Onde há vida
urbana e desenvolvimento, há
estresse e ritmos de trabalho
desumanos. A poluição causa
males terríveis, e nossa civilização é incapaz de impedir a criação de ilhas de miséria.
Mas o que piorou mesmo foi
o fato de termos perdido a fé no
progresso. O mundo ocidental
dava como certa a idéia de que o
amanhã seria radioso. Mas, nos
anos 90, percebeu-se que a
ciência trazia também coisas
como armas de destruição em
massa e que a economia estava
desregulada, enterrando de vez
a promessa de que as crises haviam deixado de existir.
O sentimento de precariedade é agravado pelo fato de os
pais não saberem se seus filhos
terão um emprego. Tampouco
há esperança vinda da esfera
política. Os políticos hoje se
contentam em pegar carona no
crescimento econômico. Não
bastasse a ilusão de que esse
crescimento da economia resolveria os problemas, eis que
agora impera a estagnação.
O mal-estar está mais profundo, inclusive nas classes que
têm acesso ao consumo. E
quando não há mais futuro, a
gente se agarra a um presente
desprovido de sentido ou ao
passado -nação e religião.
FOLHA - O senhor acredita no choque das civilizações?
MORIN - Parece cada vez mais
grave a confrontação entre os
mundos árabe-islâmico e ocidental. Mas isso não é um choque de civilizações, até porque
boa parte do mundo muçulmano está amplamente ocidentalizada. O problema é que os países árabe-islâmicos estão tomados por um desespero ligado
ao fracasso da democracia e do
socialismo naquela região e à
imensa corrupção trazida pelo
capitalismo. Diante disso, parte
da população torna-se ultra-religiosa e pensa que a salvação
está numa interpretação integrista da sharia, a lei islâmica.
O choque das civilizações é
uma profecia que se auto-realiza. Acreditar nela é estimulá-la.
Além disso, islã, cristianismo e
judaísmo têm um tronco comum. São fés monoteístas muito parecidas. Por isso me tranqüiliza saber que grandes civilizações como a China e a Índia
tiveram a felicidade de escapar
disso. Muitos males advêm dos
monoteísmos.
Olhe o que acontece com a
questão israelo-palestina. Nos
dois lados impera cada vez mais
a visão religiosa de um problema fundamentalmente nacionalista. Repare na força dos
evangélicos nos EUA, berço da
sociedade mais materialista do
mundo e onde a teoria do criacionismo não pára de se espalhar. Tudo isso é uma grande
regressão. Não acredito no choque das civilizações, acredito
na volta da barbárie em suas
mais diversas formas.
FOLHA - Uma das maiores mudanças mundiais das últimas décadas, a
internet, na sua opinião, afastou ou
aproximou as pessoas?
MORIN - Se considerarmos o
fato de a internet ser um instrumento polivalente, que serve até aos interesses do crime,
acho que a rede aproxima as
pessoas. A internet tornou-se
um sistema nervoso artificial
que tomou conta do planeta. É
algo que ajuda muito na hora de
desenvolver afinidades, encontrar amigos, amores ou parceiros de hobby. A internet é um
fato universal importantíssimo.
Mas os sistemas de comunicação não criam compreensão.
A comunicação apenas transmite informação. É preciso estimular o surgimento de uma
consciência planetária. Se a internet não desenvolver a idéia
da comunidade de destinos da
humanidade, terá apenas uma
função limitada e parcelar.
FOLHA - Que papel restou para o
intelectual hoje?
MORIN - O intelectual é alguém
que toma a palavra em público
para levantar problemas fundamentais. Infelizmente, os intelectuais foram levianos quando se tornaram stalinistas ou
maoístas. Eles enganaram as
pessoas.
Por outro lado, é ruim quando nos deparamos com um
mundo entregue a peritos, especialistas e economistas, que
são incapazes de enxergar a
abrangência dos problemas essenciais e globais.
Intelectuais são necessários,
mesmo quando eles se enganam. Quanto mais o mundo
acha que não precisa deles,
mais eles fazem falta (risos).
O jornalista SAMY ADGHIRNI viajou a convite
do evento Fronteiras do Pensamento
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