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ENTREVISTA
Karen Armstrong vê abismo entre a elite, ocidentalizada, e o povo, com sua ética pré-moderna
Modernização racha mundo islâmico
MAX GARRONE
DA "SALON"
A londrina Karen Armstrong,
ex-freira católica e especialista em
religiões, causou furor ao escrever
sobre as restrições da vida no convento nos anos 60.
Publicou dois livros sobre o islamismo -"Islam, a Short History" (Modern Library) e "Muhammad, A Biography of the Prophet" (Harper USA). No Brasil,
teve lançados "Uma História de
Deus", "Em Nome de Deus" e "Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões" (Companhia das Letras).
Ela recebeu do Centro Islâmico
do Sul da Califórnia um prêmio
por promover o entendimento
entre fés e, na entrevista a seguir,
explica as características comuns
a todas as formas de fundamentalismo e a razão pela qual os países
muçulmanos têm dificuldades
com a democracia.
Pergunta - Onde, no mundo islâmico, se traça a linha divisória entre fundamentalistas e ações extremas como o terrorismo?
Karen Armstrong - Há em muitos
países muçulmanos forte aversão
pela política externa americana, e
isso faz com que seja difícil para
eles afastar muitas lideranças fundamentalistas. Embora deplorem
coisas como as que aconteceram
em 11 de setembro, muitos integrantes das classes médias e profissionais liberais nutrem algum
grau de simpatia por atos fundamentalistas. Esse ambiente pode
incentivar o radicalismo.
Pergunta - Como se desenvolveu
o fundamentalismo islâmico?
Armstrong - A educação tem
muito a ver com isso. Não existe
muita liderança entre os ulemás,
ou doutores em religião, que, sob
vários aspectos, se distanciaram
do resto da população. Alguns
poucos possuem carisma popular, mas realmente não são muitos. No século 19, os ulemás tendiam a retroceder diante das forças seculares do Estado. Havia um
vazio ideológico.
Em nossos países laicos, deixamos a religião de lado. Nos movimentos fundamentalistas existentes em todo o mundo, as pessoas
estão trazendo a religião de volta
para o centro do palco. Num país
como o Egito, a modernização
vem se dando muito rapidamente, diferentemente do que acontece no Ocidente. É um processo tão
veloz que apenas a elite compreende alguma coisa das normas
e instituições da sociedade secular. Enquanto isso, a imensa
maioria da sociedade fica a esmo,
sem entender o que se passa.
Muitos grupos fundamentalistas têm largo apoio entre as massas porque conseguem retratar a
modernidade sob uma ótica compreensível para as pessoas. No
Egito, por exemplo, a Irmandade
Muçulmana trouxe clínicas, o ensino e as leis trabalhistas e os inseriram num contexto islâmico.
Antes da Revolução Islâmica no
Irã, a população iraniana nunca
tinha tido um governo representativo. Ela tentou consegui-lo no
início do século 20 e chegou a ter
uma Constituição, nunca posta
em prática. Os britânicos não deixaram que isso acontecesse porque havia sido descoberto petróleo na região e eles não queriam
correr o risco de perdê-lo para o
governo local.
O regime em vigor no Irã está
tentando desenvolver uma democracia xiita, de modo que a democracia se torne mais compreensível para as pessoas. Em seus últimos dias da vida, Khomeini estava tentando passar o poder dos
clérigos conservadores para o
Parlamento. O presidente Mohammed Khatami está levando
essa proposta adiante.
Pergunta - Por que parece ser tão
difícil criar instituições democráticas em países muçulmanos?
Armstrong - A democracia é algo
que nós, no mundo moderno, desenvolvemos em consequência de
nossa modernização, e não porque, de uma hora para outra, quiséssemos entregar o poder ao povo. Ela faz parte da transformação
que acompanha a economia capitalista. Na medida em que cada
vez mais pessoas em níveis humildes precisavam envolver-se na
produtividade do país, na condição de operárias, funcionárias de
escritórios e assim por diante, elas
precisavam receber um mínimo
de educação. Mais educação, por
sua vez, exigia participação maior
nos processos decisórios do país.
Para fazer uso de todos os recursos humanos que tinham a sua
disposição, os governos se deram
conta de que teriam que estender
os direitos à toda população.
O mundo muçulmano ainda
não teve tempo para criar uma
democracia própria. Ele ainda
não tem o mesmo tipo de economia capitalista de mercado, e, em
muitos países, a democracia acabou sendo malvista porque foi associada aos maus regimes apoiados pelos Estados Unidos, governos encabeçados por déspotas como os xás do Irã.
Os fundamentalistas
acreditam que a moderna sociedade
liberal queira
eliminar a religião
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Pergunta - Como fica a divisão
entre religião e Estado no islã? Pelo
que compreendi, não existe no Alcorão uma divisão do tipo "a César
o que é de César, a Deus o que é de
Deus", e a insistência de Khatami
em impor um Estado de Direito no
Irã suscitou reações diversas.
Armstrong - Tudo mudou com o
processo de modernização. Embora, em termos ideológicos, não
possa haver separação entre religião e Estado no islã, na realidade
tanto sunitas quanto xiitas criaram essa separação desde muito
cedo em sua história.
No mundo sunita, a separação
se deu na prática, e a lei islâmica
foi desenvolvida como uma espécie de cultura contrária à das cortes aristocráticas.
No mundo xiita, havia a separação entre religião e Estado em
princípio. Dizia-se que, como todo Estado é corrupto, os clérigos
não devem participar deles -que
os religiosos devem afastar-se do
Estado até que o messias chegue e
estabeleça um Estado muçulmano correto. A insistência do aiatolá Khomeini em que um clérigo
deveria liderar o Estado foi revolucionária.
Pergunta - Você quer dizer que a
religião não tem sido parte importante do Estado nas sociedades islâmicas?
Armstrong - Os movimentos
fundamentalistas em todo o
mundo procuram trazer a religião
de volta ao centro da política e da
preocupação pública. Os Estados
Unidos o fizeram no início do século 20, na realidade durante a
Primeira Guerra Mundial.
O islã foi a última das três religiões monoteístas a produzir uma
religião fundamentalista, no final
dos anos 1960, após a Guerra dos
Seis Dias. O fundamentalismo religioso deitou raízes em ambos os
lados da guerra.
No Egito, o sentimento de que a
política secular do presidente
Nasser estava falida levou muitos
egípcios a sentir o desejo de voltar
para suas raízes.
A mesma coisa se deu em Israel,
com as seitas ortodoxas.
Pergunta - O fundamentalismo
vem crescendo rapidamente no
mundo islâmico desde os anos
1970 ou tem sido isolado em países
como Irã e Egito?
Armstrong - Não pense que todo
o mundo muçulmano é fundamentalista. E nossa visão é que
apenas os Estados Unidos e o Reino Unido têm fundamentalistas
felizes, mas isso não é inteiramente verdade. A mesma coisa se dá
no mundo muçulmano.
Nem todos os movimentos fundamentalistas são violentos. Por
exemplo, a maioria dos movimentos fundamentalistas americanos e das organizações ultra-ortodoxas judaicas em Nova York e
em Israel não é violenta.
Alguns dos movimentos estudantis egípcios se limitaram a
prestar assistência aos estudantes,
e a Irmandade Muçulmana se
ocupava em grande medida em
prestar serviços sociais à população em geral, até que foi reprimida e encarcerada por Nasser. Até
então, sua preocupação principal
tinha sido abrir clínicas e ensinar
leis da fábrica às pessoas.
Pergunta - O que levou movimentos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana e o Hamas a
se transformarem de organizações
que prestavam serviços sociais em
organizações terroristas?
Armstrong - O fato de o país estar em guerra. Os EUA têm tido
sorte, na medida em que faz muito tempo que não estão em guerra. No Oriente Médio, porém, as
tensões políticas e a guerra são
praticamente uma constante há
30 anos. A raiz de todo movimento fundamentalista está no medo.
Os fundamentalistas acreditam
que, em algum nível, a moderna
sociedade secular liberal queira
acabar com a religião. Mesmo os
fundamentalistas americanos
têm esse medo. Algumas pessoas
nas pequenas cidades do interior
dos Estados Unidos se sentem colonizadas pelo modo de ser e a ética distintos de Washington, Yale e
assim por diante.
Nos países do Oriente Médio, o
processo de secularização tem sido tão acelerado, em vários casos,
que é sentido como uma agressão.
Na Turquia, Ataturk fechou todas as madrassas (escolas religiosas), obrigou os sufis a desaparecerem na clandestinidade e forçou homens e mulheres a adotarem a roupa ocidental.
No Irã, o xá Reza Pahlevi ordenou às tropas que atirassem contra centenas de manifestantes que
protestavam contra a obrigatoriedade de adotar a vestimenta ocidental. Nesse ambiente, compreende-se que a secularização
seja sentida como agressão.
Você tem pessoas que se sentem
acossadas, raivosas e vingativas,
que sentem que estão lutando por
sua sobrevivência. Sob essas condições, qualquer pessoa age com
agressividade.
Aqui no Reino Unido as pessoas
têm tão pouco interesse pela religião que não há problema nesse
sentido, mas temos o hooliganismo no futebol, em que se manifestam as experiências normalmente presentes na religião. Por
meio do futebol, os torcedores
podem colocar toda a sua alma
num movimento, viver um sentimento coletivo e manifestar-se
contra um inimigo comum, como
ocorre em muitos movimentos
fundamentalistas.
Pergunta - Por que a sra. liga a
expansão do fundamentalismo islâmico ao pós-Guerra dos Seis
Dias?
Armstrong - Eles sentiram que a
adoção do método ocidental não
estava funcionando, que esse método estava falido, e retrocederam
para uma religião que já conheciam. Ao mesmo tempo, Khomeini estava estudando em Qum e
começou a protestar contra o xá.
Nos anos 60, ele foi deportado; em
seguida houve um período de calmaria, e então, no final dos anos
70, uma intensificação repentina
do fundamentalismo.
A Maioria Moral apareceu nos
EUA, a Revolução Islâmica iraniana eclodiu, e também testemunhamos o surgimento do sionismo religioso em Israel, com o novo poder conquistado pelos partidos ultra-ortodoxos israelenses.
No Oriente Médio, mais e mais
pessoas inspiradas pelo exemplo
da Revolução Islâmica começaram a voltar-se a seus ideólogos
próprios, como Said Qutb, no
Egito, que foi executado por Nasser em 1966.
Então o Afeganistão explodiu, e,
em seguida, o Líbano. A Maioria
Moral americana perdeu destaque após os escândalos sexuais
nesse país, mas ela ainda existe e
está se radicalizando. Não desapareceu. Esses movimentos não
desaparecem -só se modificam.
Do mesmo modo, em Israel na
década de 80 havia cada vez mais
partidos fundamentalistas exercendo sobre o governo um efeito
que eles nunca antes tinham tido.
Israel era um Estado sem dúvida
alguma secular, mas hoje nenhum político pode formar um
governo sem contar com o apoio
dos judeus fundamentalistas. Ao
mesmo tempo, dentro do islã o
fundamentalismo era visto como
um setor que crescia em silêncio e
sem parar. Hoje o islã é tão popular quanto foram as políticas socialistas e nacionalistas de Nasser
nos anos 50 e 60.
O mundo muçulmano ainda não teve tempo
para criar uma
democracia própria
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Criou-se um vácuo, especialmente no Oriente Médio, onde a
sociedade se dividiu e rachou entre uma elite intelectual educada
no Ocidente e que compreende o
que acontece no mundo e, por outro lado, a enorme base da sociedade que, em essência, é abandonada sozinha com sua ética pré-moderna. Ela não compreendia
as transformações, desde o novo
tipo de planejamento urbano até
as novas instituições políticas. Como poderia votar de maneira
criativa quando não compreendia
a política secular?
O Ocidente chegou a isso de
maneira gradativa, de modo que
as mudanças tiveram tempo de
chegar até o povo. No mundo islâmico, a modernização rachou os
países ao meio.
Vale notar que, na virada do século 20, todos os intelectuais muçulmanos eram pró-Ocidente,
porque viam o Ocidente como
ponta de lança do progresso e da
justiça. Eles achavam que o progresso e a justiça acabariam por
chegar até o povo. Diziam "esses
ocidentais são muçulmanos melhores" (do que eles), porque o islã atribui grande importância à
justiça social, e parecia que a justiça social estava chegando às massas no Ocidente.
Pergunta - O que vai acontecer
agora, quando os fundamentalistas recebem muito apoio no mundo
islâmico e muitos parecem dar
apoio tácito às ações terroristas?
Armstrong - Todas essas são más
religiões. Num mundo hostil, elas
diminuem a importância das propostas de misericórdia da religião
e fortalecem seus elementos mais
belicosos. Quando se tem má religião, como a arte má ou o mau sexo, é fácil ela cair no niilismo e em
coisas como as que aconteceram
em 11 de setembro.
Quando chegam ao poder, moderam o tom, mas ainda afirmam:
"Não queremos ser como os ocidentais". É uma ética que afirma
que não é preciso ser como o Ocidente para ser progressista ou
moderno. Rafsanjani [presidente
do Irã, 1989-97" disse que o Irã seria uma democracia xiita -"estamos fazendo à nossa maneira".
Mas, em última análise, eles constatam que, para um governo ser
moderno, é preciso que seja democrático. Os governos da Europa oriental aprenderam a mesma
lição após tentarem apossar-se de
todos os benefícios da modernidade, mas ficaram para trás.
Vale lembrar que a cultura é
contestada em todas as sociedades. Sempre há uma briga para
decidir qual ideologia vai prevalecer. Esse conflito está acontecendo nos EUA, onde há pessoas que
não se identificam com a democracia e têm má opinião a respeito
dela; estão convencidas de que o
governo federal irá cair e que
Deus vai cuidar de tudo. Também
em outros países se assiste a uma
luta para determinar qual ideologia vai dominar.
Pergunta - O que dizer da declaração de guerra de Bush e de seu
uso subsequente do termo "cruzada" para descrevê-la? Isso trai um
problema básico de compreensão
de como adotar uma abordagem
que conquiste corações e mentes
dos fundamentalistas?
Armstrong - Foi uma grande estupidez da parte de Bush falar em
"cruzada" quando tentava apelar
para os países muçulmanos. Os
americanos não sabem o suficiente sobre o mundo muçulmano
para montar uma boa campanha
de relações públicas. Nas viagens
que faço pelos Estados Unidos,
me espanta a falta de interesse pelo resto do mundo.
Tradução de Clara Allain
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