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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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Ex-ditador iraquiano contava com o auxílio de pouca famílias próximas a ele em sua vida de foragido das forças americanas

Os últimos dias de SADDAM

JOHN F. BURNS E ERIC SCHMITT
DO "NEW YORK TIMES", EM AD DAWR

Antes de ser capturado em um abrigo parecido com um caixão perto da desolada cidade de Ad Dawr, às margens do rio Tigre, Saddam Hussein passou meses se deslocando furtivamente entre 20 ou 30 refúgios indistintos no centro da região sunita do país, onde uma rede estreita de famílias e clãs o protegeu e o manteve informado sobre os acontecimentos no Iraque, disseram oficiais das Forças Armadas dos EUA.
Saddam usava mensageiros para transmitir suas instruções verbais a um núcleo de células do seu partido Baath (hoje banido) que o ajudavam a orientar a insurgência contra a coalizão, de acordo com oficiais envolvidos nos esforços de inteligência que culminaram na operação de captura de Saddam, em 13 de dezembro.
Para evitar ser detectado, Saddam, 66, se deslocava a pé, em pequenos barcos pelo rio Tigre e por estradas secundárias, em uma mistura sempre mutável de carros, táxis e caminhonetes, muitas vezes à noite, e raramente com mais de dois ou três leais seguidores, para não chamar a atenção.
Acostumado a palácios de tetos altos e arabescos nas paredes, ele deixou a barba e o cabelo crescerem, sobreviveu à base de chocolate, mel e frutas em calda e abandonou os uniformes e ternos italianos que ostentava em Bagdá, optando por roupas tradicionais.
Antes que seus dois filhos, Uday e Qusay, impiedosos praticantes do terrorismo de Estado, fossem mortos em tiroteio com soldados dos EUA, em Mossul, no norte do Iraque, em 22 de julho, a inteligência americana diz que eles se encontravam periodicamente para planejar a insurgência.
A morte dos dois deixou Saddam ainda mais isolado dos líderes de seu governo, muitos dos quais estavam sendo localizados e capturados com base na lista americana de 55 mais procurados. Alguns desses líderes, depois de detidos, ofereceram pistas importantes sobre Saddam.
O coronel Todd Megill, oficial de inteligência da 4ª Divisão de Infantaria dos EUA, em Tikrit, responsável pela operação de captura de Saddam, disse que as reuniões entre os três talvez fossem causadas tanto por necessidades operacionais quanto por motivos de conforto familiar. "Eles provavelmente se reuniam em base regular porque só podiam conversar entre si", afirmou.
Boa parte da vida de Saddam como fugitivo continua a ser uma incógnita. Oficiais da inteligência e comandantes das forças americanas no Iraque vinham trabalhando para delinear sua vida como fugitivo. Basearam suas conclusões em entrevistas com parentes, interrogatórios de líderes capturados do partido Baath e outros fiéis do regime, interceptações de conversas em telefones via satélite, documentos apreendidos, um conhecimento dos hábitos passados de Saddam e certas suposições sobre o que seria preciso para evitar a caçada humana.
Os oficiais dizem acreditar que Saddam fugiu para o norte do país logo que a capital foi tomada, no início de abril, perdendo a confiança falastrona que vinha demonstrando em seus últimos dias de poder devido à velocidade do avanço americano e à implosão de seu governo.
Tirano que construiu um Estado totalitário baseado numa rede de mentiras, ele violou uma última promessa, a de combater ao lado de seus seguidores, feita do alto de um Passat velho, do lado de fora da mesquita de Abu Hanifa, uma das mais sagradas para os sunitas do Iraque, no dia 9 de abril, o dia da queda da cidade. Enquanto ele falava, no distrito de Adhamiya, os tanques americanos mais próximos estavam a menos de 2 km de distância.
Depois de seu discurso em frente à mesquita de Adhamiya, Saddam e Qusay encontraram fogo pesado de soldados americanos ao tentar cruzar o Tigre de volta para o bairro de Khadamiya, onde gangues de fedayin, a milícia controlada pelo outro filho do ditador, Uday, patrulhavam as ruas. Recuando, eles voltaram a Adhamiya, que foi vasculhada por forças americanas na mesma noite, na primeira das muitas tentativas frustradas de capturar Saddam.
Não muito tempo depois, Saddam e seus dois filhos desapareceram, saindo de Bagdá rumo ao norte, para as terras de sua tribo.
Na Província de Salahuddin, região vasta com mais de 3 milhões de habitantes que inclui a cidade de Tikrit, onde Saddam cresceu, ele decidiu se ocultar. Entrou em contato com membros de sua família e de sua tribo, aliados desde antes de sua ascensão ao poder e beneficiados pelo seu governo.
Eram, em geral, simples aldeões, escolhidos entre uma rede de cinco famílias tribais. Mas o valor deles para Saddam em fuga provinha de seus contatos nas aldeias, seu conhecimento excelente da área e sua astúcia para iludir um inimigo dotado de satélites de espionagem capazes de interceptar comunicações telefônicas, tecnologia de imagem capaz de detectar homens se movendo por estradas secundárias e nas margens de rios durante a noite e bancos de dados computadorizados com listas de identidades, biografias e hábitos de milhares dos seguidores do ditador.
"São homens que o acompanharam por anos, fizeram o trabalho sujo para ele, são tão sujos quanto ele", disse Megill.
O homem crucial para Saddam pesava quase 140 kg, um veterano de meia-idade da Organização Especial de Segurança, uma das mais temidas agências no aparelho do terror iraquiano. Foi a sua captura em Bagdá, um dia antes da prisão do ex-ditador, que ofereceu a oportunidade de apanhar Saddam. Ele foi detido depois de uma dúzia de batidas frustradas em Tikrit, Samarra e Baiji, cidades muçulmanas sunitas no vale do rio Tigre.
O informante foi descrito como um dos cinco auxiliares a quem Saddam atribuía tarefas essenciais. Seus movimentos eram em geral improvisados.

Combate à insurreição
Os investigadores americanos estão examinando os contatos de Saddam nos oito meses em que se manteve foragido na esperança de descobrir novos detalhes que os ajudem a combater a insurreição que custou a vida de mais de 200 soldados americanos desde que o presidente George W. Bush declarou o fim das grandes operações de guerra, em 1º de maio.
Os americanos dizem que precisam saber até que ponto as emboscadas, as explosões em estradas e os atentados suicidas tinham por objetivo restaurar o regime de Saddam e até que ponto o ditador deposto estava dirigindo os ataques. Parte da resposta, dizem os americanos, depende de documentos apreendidos com Saddam, que dão indícios de que ele oferecia orientação e inspiração aos ataques, se não liderança operacional.
Megill se diz convencido de que o papel de Saddam era crucial. "Não creio que ele saísse planejando operações, mas acho que ele fornecia orientações gerais aos subordinados, determinando que se concentrassem nisso ou naquilo, recrutassem membros em certa área, causassem problemas."
Se as relações de parentesco eram básicas para a sobrevivência de Saddam, o mesmo se aplica à desconfiança que ele exibia com relação a todos os que o cercam, nascida em seus dias de juventude como conspirador. Essa desconfiança o levou, dizem os oficiais americanos, a organizar sua vida como fugitivo em torno de uma rede de células no submundo, isoladas umas das outras, usando um modelo que ele estudou nos livros sobre a organização bolchevique na Rússia e o homem que tomou por modelo, Stálin.
Mensagens escritas e telefonemas de Saddam eram raros. Mas a inteligência americana de alguma forma penetrou no círculo interno de seus colaboradores antes da guerra, descobrindo que um de seus encarregados de segurança empregava um telefone via satélite Thuraya, do modelo preferido pelos comandantes dos EUA.
De acordo com relatos que estão circulando em Bagdá, Saddam executou pessoalmente esse segurança depois do segundo de dois bombardeios de precisão que quase o mataram, em 7 de abril. Depois, o uso de telefones via satélite pelos seus colaboradores virtualmente desapareceu.
No final de seu governo, dizem os oficiais americanos, um grupo de 20 a 25 pessoas compunha o círculo mais íntimo de Saddam. Eles representavam os cruéis bandos tribais que eram a base de sua força de segurança em Bagdá: pagadores que distribuíam parte dos milhões de dólares que Saddam levava com ele, de bancos saqueados e cofres secretos em seus palácios, quando fugiu de Bagdá, encarregados de logística que planejavam seus movimentos e preparavam o caminho, e um séquito de cozinheiros, motoristas e guarda-costas. Todos compartilhavam de laços de sangue e confiança, datando da ascensão de Saddam ao poder, quatro décadas antes, disseram os americanos.
Saddam tentava manter em segredo seus esconderijos e movimentos, dando grandes somas de dinheiro aos que o abrigavam, muitas vezes depois que seus asseclas batiam em suas portas tarde da noite, com um pedido de ajuda para um parente anônimo. A maior parte das casas usadas parece ter sido de homens favorecidos por Saddam.
Para manter a lealdade dessas pessoas e evitar a tentação da recompensa de US$ 25 milhões oferecida pelos EUA, Saddam carregava com ele grandes quantias. Foi capturado com US$ 750 mil em notas de cem dólares. Os oficiais acreditam que suas opções estavam se reduzindo à medida que seu dinheiro se esgotava. Outras posses, como jóias da extravagante coleção de sua primeira mulher, Sajida, a mãe de Uday e Qusay, também estavam no fim.
Saddam era transferido de um assessor para outro, de refúgio a refúgio, sempre um passo à frente dos americanos. Mas houve escapadas difíceis. Antes da missão, a 1ª Brigada acreditava que tinha informações confiáveis o bastante sobre o esconderijo de Saddam em 11 ocasiões. Num dos casos, chegou oito horas atrasada.
"Meu palpite é de que ele tinha 20 ou 30 desses refúgios pelo país enquanto se deslocava", disse o general Raymond T. Odierno, comandante da 4ª Divisão. "Acho que ele se deslocava sem muito aviso prévio, a cada três ou quatro horas". O método seria semelhante aos que a inteligência americana detectou durante a guerra do Golfo Pérsico, em 1991, e os 21 dias da Guerra do Iraque, neste ano. Ele raramente dormia no mesmo lugar por duas noites, abandonava suas comitivas, se deslocando em táxis velhos com um ou dois guarda-costas armados, e usava um grupo de sósias.
Os refúgios variavam muito: casas modestas em bairros suburbanos de classe média, construções auxiliares em propriedades de grande porte controladas por seus capangas ou sítios decadentes como aquele em que foi finalmente apanhado, em Ad Dawr. Alguns tinham paredes falsas. Outros dispunham de apertados abrigos subterrâneos. Todos se localizavam em áreas sunitas controladas por fiéis seguidores.

O esconderijo final
Foi um desses homens, Qais Namaq, ex-guarda de um dos palácios de Saddam em Bagdá, acompanhado por dois irmãos, que o conduziu a uma casa de sítio à beira-rio, em Ad Dawr. Eles foram presos durante a operação. Uma irmã de Namaq disse, em outra casa da família, em Ad Dawr, que seus três irmãos cavaram o buraco e despejaram o concreto para o apertado refúgio subterrâneo no pátio da fazenda onde Saddam foi encontrado.
Agora, a questão mais premente para os furiosos homens de Tikrit e Ad Dawr é por que seu ídolo caído não lutou, optando por deixar uma pistola e um rifle Kalashnikov no chão e sair de mãos para cima, no meio da noite. "Foi um erro escondê-lo em um lugar repulsivo como aquele, uma desonra para Saddam, mas também para o Iraque", disse Hatim Jassem, 35, professor de teologia. "As pessoas o viram na TV e o acharam patético. Ele nos decepcionou. Não honrou o Iraque."



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