São Paulo, terça-feira, 28 de dezembro de 2010 |
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ANÁLISE Haitianos perderam controle sobre seu processo eleitoral
MONICA HIRST ESPECIAL PARA A FOLHA Em dezembro de 2009, quando se avaliavam os resultados obtidos na estabilização interna e gradual recuperação de um projeto de desenvolvimento no Haiti, percebia-se uma vinculação entre os avanços e a presença latino-americana no país. Ao mesmo tempo, o caráter multilateral da intervenção parecia ocultar o fato de que o Haiti pertencia ao perímetro de segurança dos EUA, que nestes anos esteve ocupado em seu imbróglio no Afeganistão e no Iraque. Para muitos olhos haitianos, as tropas da ONU, sob o comando brasileiro, realizavam um serviço que atendia essencialmente aos interesses de Washington. Outros, entretanto, percebiam uma diferença entre essa e outra ocupações e aplaudiam a presença e as iniciativas de cooperação conduzidas pelos países latino-americanos. Desde 2006, o processo político se ordenava obedecendo a um marco de legalidade. Também se observava uma inédita interação entre o governo haitiano e a comunidade latino-americana e caribenha, e eram palpáveis junto à sociedade haitiana os resultados da cooperação em áreas de políticas sociais, desenvolvimento econômico, direitos humanos e fortalecimento institucional. Neste quadro, a ONU emitia sinais de que seria possível uma redução e mesmo uma retirada das forças da Minustah após as eleições legislativas e presidenciais de novembro de 2010. TERREMOTO Mas o terremoto de janeiro passado varreu consigo esse cenário. A intervenção internacional diluiu sua marca regional, enfraqueceu sua configuração multilateral e recrudesceu a preeminência política e econômica dos EUA. Formalmente foi criada uma administração ONU-EUA com a presença de segmentos do depauperado Estado haitiano para executar um plano de reconstrução abrangente e ambicioso. Do lado brasileiro, o governo Lula subiu vários degraus em seus compromissos militares e econômicos no Haiti. A presença brasileira passou a estar articulada aos entendimentos com os grandes doadores, entre eles EUA, Canadá, França e Espanha. A ação internacional no Haiti em todo 2010 esteve longe de atender às novas emergências que se impuseram após o terremoto. Apesar das promessas feitas por governos e organismos multilaterais, a realidade haitiana se deteriorou ainda mais. A maioria dos doadores, em lugar de assumir a responsabilidade de proteger a castigada nação haitiana, deixou que ela sofresse as consequências da irresponsabilidade da não proteção. A permanência dos escombros, um milhão de pessoas vivendo em precários acampamentos em Porto Príncipe e arredores, o surto de cólera fazem parte dessa desoladora realidade. Foi nesse quadro que ganhou força a ilusão de que a realização das eleições poderia oferecer um novo contexto institucional que daria impulso à reconstrução do país. As condições precárias em que as eleições ocorreram favoreceram situações irregulares que foram motivo de protesto popular e da maioria dos 17 candidatos presidenciais. A margem mínima de vantagem do candidato governista, Jude Celestin, alimentou uma desconfiança generalizada. Representantes da comunidade internacional pediram a recontagem dos votos, com a ameaça de apoiar sua impugnação. Nos últimos dias, foi proposta uma comissão verificadora da OEA. De fato, a sociedade haitiana perdeu completamente o controle do processo eleitoral de seu país. O Brasil vem insistindo no respeito ao marco legal do processo eleitoral, que constitui a única conexão do país a um incipiente estado de direito. A sua invalidez conduziria à instalação de um governo de transição, o que implicará retroceder a 2004, em condições infinitamente mais vulneráveis. Este seria possivelmente o caminho para a transformação do país num protetorado EUA-ONU por algumas décadas. Corrupção e fraude eleitoral são companheiras inseparáveis que se agravam em Estados vulneráveis sob intervenção internacional. As suspeitas sobre o governo haitiano omitem olimpicamente a cota de responsabilidade, ou melhor a falta de, da comunidade internacional pela mazorca haitiana. MONICA HIRST é professora de política internacional da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires Texto Anterior: Haiti deve adiar 2º turno de eleições Próximo Texto: Tribunal reacende tensão no Quênia após três anos Índice | Comunicar Erros |
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