São Paulo, domingo, 29 de janeiro de 2006

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ARTIGO

A segunda fundação da Bolívia

EDUARDO GALEANO

No dia 22 de janeiro de 2002, Evo foi expulso do paraíso. Ou seja: o deputado Evo Morales foi posto para fora do Parlamento.
No dia 22 de janeiro de 2006, nesse mesmo lugar de aspecto pomposo, Evo Morales foi empossado como presidente da Bolívia. Ou seja: a Bolívia começa a dar-se conta de que é um país de maioria indígena.
Na época da expulsão, um deputado indígena era algo mais raro do que um cão verde. Hoje, são muitos os legisladores que mascam coca, um costume milenar que era proibido no sagrado recinto do Parlamento.
 
Muito antes da expulsão de Evo, seu povo, o indígena, já havia sido expulso da nação oficial. Os índios não eram filhos da Bolívia -não passavam de sua mão-de-obra. Até pouco mais de meio século atrás, os índios não podiam votar nem andar pelas calçadas das cidades. Com toda razão, Evo, em seu primeiro discurso presidencial, disse que, em 1825, os índios não foram convidados para a fundação da Bolívia.
Essa é também a história de toda a América, incluindo os EUA. Nossos países nasceram mentidos. A independência dos países americanos foi usurpada desde o primeiro momento por uma minoria muito minoritária.
Todas as primeiras Constituições, sem exceção, deixaram de fora as mulheres, os índios, os negros e os pobres em geral.
Pelo menos nesse sentido, a eleição de Evo Morales é equivalente à eleição de Michelle Bachelet. Evo e Eva. Pela primeira vez um indígena é presidente da Bolívia, e pela primeira vez uma mulher é presidente do Chile. O mesmo poderia ser dito do Brasil, onde, pela primeira vez, o ministro da Cultura é negro. Por acaso não tem raízes africanas a cultura que salvou o Brasil da tristeza?
Nestas terras doentes de racismo e de machismo, não faltará quem ache que tudo isso é um escândalo. O escandaloso mesmo é que não tenha acontecido antes.
 
Cai a máscara, o rosto vem à tona, e a tempestade se intensifica.
A única linguagem digna de crédito é aquela nascida da necessidade de dizer. O mais grave defeito de Evo consiste no fato de que as pessoas acreditam nele, porque ele transmite autenticidade até mesmo quando comete algum erro ao falar o castelhano, que não é sua língua de origem. Acusam-no de ignorância os doutores que exercem a superioridade de ser ecos de vozes alheias. Os vendedores de promessas o acusam de demagogia. Acusam-no de caudilhismo aqueles que impuseram à América um Deus único, um rei único e uma verdade única. E tremem de pavor os assassinos de índios, com medo de que suas vítimas sejam como eles.
 
Bolívia parecia ser não mais do que o pseudônimo daqueles que mandavam na Bolívia e que o exprimiam quando cantavam o hino nacional. E a humilhação dos índios, transformada em costume, parecia ser um destino.
Entretanto, nos últimos tempos, meses, anos, esse país vivia em um perpétuo estado de insurreição popular. Esse processo de contínuos levantes, que deixou um rastro de mortes, chegou ao auge com a guerra do gás, mas já vinha de antes. Vinha de antes e continuou depois, até a eleição de Evo, contra ventos e marés.
Com o gás boliviano estava sendo repetida uma história antiga de tesouros roubados ao longo de mais de quatro séculos, desde meados do século 16: a prata de Potosí deixou uma montanha vazia, o salitre da costa do Pacífico deixou um mapa sem mar, o estanho de Oruro deixou uma multidão de viúvas. Foi isso o que deixaram, e apenas isso.
 
Os tumultos dos últimos anos foram crivados de balas, mas evitaram que o gás se evaporasse em mãos alheias, desprivatizaram a água em Cochabamba e La Paz, derrubaram governos governados de fora do país e disseram "não" ao imposto sobre o salário e outras sábias ordens do FMI. Do ponto de vista dos meios civilizados de comunicação, essas explosões de dignidade popular foram atos de barbárie. Mil vezes já o vi, li e ouvi: a Bolívia é um país incompreensível, ingovernável, intratável, inviável. Os jornalistas que o dizem se enganam de "in": deveriam confessar que, para eles, a Bolívia é um país invisível.
 
Não há nada de estranho nisso. Essa cegueira não é apenas um mau hábito de estrangeiros arrogantes. A Bolívia nasceu cega para ela mesma, porque o racismo impõe antolhos às pessoas, e com certeza não faltam bolivianos que preferem enxergar-se com os olhos que os menosprezam.
Mas deve ser por algum motivo que a bandeira indígena dos Andes faz uma homenagem à diversidade do mundo. De acordo com a tradição, é uma bandeira nascida do encontro do arco-íris fêmea com o arco-íris macho. E esse arco-íris da terra, que na língua nativa se chama tecido de sangue e que ondeia ao vento, tem mais cores do que o arco-íris do céu.


Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, é autor de "As Veias Abertas da América Latina". Copyright IPS.

Tradução de Clara Allain


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