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KREMLIN
Presidente restabelece o poder dos serviços de segurança, dando-lhes influência política e lugar destacado na máquina estatal
Sob Putin, Estado russo privilegia o medo
ARKADY OSTROVSKY
DO "FINANCIAL TIMES"
Antes de assumir a Presidência
russa, em 2000, Vladimir Putin levou flores ao túmulo do ex-chefe
da KGB e posterior secretário-geral do Partido Comunista Iuri Andropov (1982-84), no Kremlin, e
reinstalou uma placa em memória de Andropov na sede da temida polícia secreta soviética.
A restauração da placa, que tinha sido retirada após a queda da
URSS, foi recebida com indignação por setores que tinham sofrido sob o regime comunista. Para
os membros do serviço de segurança russo passado e presente,
porém, ela assinalava uma esperança de tempos melhores por vir.
Essas esperanças não foram vãs.
Nos últimos quatro anos, Putin
-antigo oficial da KGB e homem
que, cada vez mais, vem sendo
visto como herdeiro espiritual de
Andropov- devolveu aos serviços de segurança seu poder antigo
e os princípios de ordem, disciplina e controle estatal rígido tão caros a Andropov. Após uma década de humilhação e empobrecimento, o Serviço Federal de Segurança (FSB), sucessor da KGB, e
suas organizações irmãs gozam
de influência política maior do
que tiveram em qualquer momento desde o fim da URSS.
Alguns dos ""siloviki" -plural
de termo relativo a poder em russo, que abrange os promotores, a
polícia, os militares e os integrantes dos serviços de segurança-
assumiram cargos de importância na política russa, ajudando
Putin, antigo chefe da FSB, a
montar sua base de poder pessoal.
Com a quase certeza de sua vitória na eleição presidencial marcada para 14 de março, muitos temem que, nos próximos anos, o
domínio dos "siloviki" vá se fortalecer, levando a efeitos nocivos
para a jovem democracia russa e a
incipiente economia de mercado.
Regime autoritário
Putin fortaleceu ainda mais seu
poder na terça-feira, quando demitiu seu premiê, Mikhail Kasyanov, abrindo o caminho para a indicação de um novo gabinete.
Enquanto isso, a guerra contínua contra os separatistas na
Tchetchênia e atentados terroristas em Moscou vêm sendo aproveitados pelos "siloviki" para exigir poderes adicionais para as forças de segurança. Mas a influência
dos "siloviki" se estende para
muito além de questões relacionadas diretamente à segurança,
chegando ao sistema judiciário, às
empresas, à economia, à mídia e à
política externa.
O controle que exercem sobre o
poder não significa que esteja
ocorrendo uma volta ao sistema
totalitário de estilo soviético.
Tampouco assinala o fim da economia de mercado: após dez anos
de reformas, as vantagens do capitalismo em relação ao planejamento central são evidentes demais. Mas a crescente influência
dos "siloviki" significa, sim, que a
Rússia se dirige a um regime mais
autoritário, no qual o processo
democrático e o funcionamento
do mercado são subordinados
aos órgãos do poder estatal.
""A Rússia ainda possui os atributos de uma democracia, mas,
gerida pelos "siloviki", essa democracia pode virar ilusória", diz a
socióloga Olga Kryshtanovskaya.
Para muitos na Rússia, o poder
crescente dos "siloviki" reacende
memórias incômodas sobre como o medo dos serviços de segurança era algo sempre presente no
sistema soviético. ""O medo e a intolerância eram a principal ideologia do Estado soviético. A volta
desse medo é um dos aspectos
mais preocupantes da Rússia de
hoje", diz Alexander Yakovlev,
assessor de Mikhail Gorbatchov,
o último presidente da URSS, e
ex-membro do Politburo soviético. No âmbito internacional, o
poder dos "siloviki" e as tendências autoritárias na Rússia provocam receios crescentes.
Quando Putin chegou ao poder,
em 2000, três forças políticas disputavam a influência maior no
país. Um grupo consistia de economistas liberais indicados por
Putin para implementar reformas; um segundo incluía antigos
colegas de Putin de São Petersburgo, onde o presidente iniciara
sua carreira na KGB, e o terceiro
grupo abrangia pessoas da órbita
de Boris Ieltsin, o presidente anterior. Hoje, quatro anos mais tarde, os economistas liberais perderam boa parte de sua influência, e
os integrantes do grupo de Ieltsin
praticamente desapareceram.
O sinal mais visível do domínio
dos "siloviki" foi o ataque lançado
em 2003 contra Mikhail Khodorkovsky, oligarca dotado de ambições políticas e antigo presidente
da Yukos, a maior companhia petrolífera da Rússia. Khodorkovsky foi preso em outubro, acusado de fraude e sonegação de impostos, e sua participação acionária na Yukos foi congelada.
Os "siloviki" não formam um
bloco homogêneo: existem rivalidades de longa data entre os serviços de segurança, o Exército e o
Ministério do Interior. Mas eles
estão unidos na defesa da supremacia de um Estado forte e se
vêem como seus guardiães.
"O principal objetivo do bloco
dos "siloviki" é comprovar a força
do poder do Estado no país e
mostrar que ninguém pode estar
acima do Estado", diz Gennady
Gudkov, ex-agente da KGB que
dirige uma empresa de segurança.
Para muitos no FSB e no Exército, foi essa a justificativa do ataque
a Khodorkovsky. Igor Goloshchapov, antigo oficial de uma unidade de contra-inteligência da KGB,
explica: "Khodorkovsky tentou
privatizar a Duma e formar seu
lobby próprio. Ele desafiou o próprio fundamento do Estado".
Vingança
Mas não é apenas o sentimento
patriótico que move os "siloviki".
Eles são motivados também pela
oportunidade de conseguir vingança, depois de perder seus privilégios e seu status social de elite.
Em agosto de 1991, na tentativa
de preservar seu poder político
num momento em que a URSS
começava a desabar, alguns dirigentes da KGB lideraram uma
tentativa de golpe contra Gorbatchov. Mas o levante fracassou, e
em seu último dia uma multidão
de milhares de pessoas aplaudiu
quando um guindaste removeu
uma estátua do fundador da KGB,
Felix Dzerzhinsky, da frente da sede da organização -um ato visto
dentro da KGB como traição.
Quando Gorbatchov retornou
da prisão domiciliar que lhe tinha
sido imposta, prometeu pôr fim
àquele ""Estado dentro do Estado". Jornais russos da época pediram que a KGB fosse ""liquidada".
Entretanto o que se seguiu não
foi uma abolição, e sim uma tentativa de reforma. A KGB ganhou
um nome novo e foi dividida em
uma série de agências independentes. Milhares de seus funcionários foram desligados. Muitos
chefes acabaram trabalhando para os empresários que ficaram
sendo conhecidos como oligarcas. Outros montaram empresas
privadas de segurança. Aqueles
que permaneceram na KGB passaram a receber salários míseros
e, ao mesmo tempo, viam os oligarcas embolsar bilhões de dólares, abocanhando participações
nas estatais privatizadas.
A hora dos "siloviki"
De acordo com Olga Kryshtanovskaya, "com a eleição de Putin, os "siloviki" estão sentindo que
sua hora chegou". O ressurgimento do poder da KGB teve início ainda no governo de Ieltsin
(1991-99) -afinal, foi ele quem
indicou Putin para presidente em
exercício quando renunciou inesperadamente, no final de 1999.
De acordo com um estudo de
Kryshtanovskaya, a proporção de
"siloviki" nos escalões mais altos
do poder do Kremlin subiu de
4,8%, sob Gorbatchov, para
58,3% sob Putin. Mais da metade
do "politburo" informal de Putin,
formado por 24 integrantes, é de
"siloviki". No Kremlin, segundo a
socióloga, 1 em cada 3 funcionários tem passado militar ou saiu
dos serviços de segurança.
Segundo Yakovlev, "a administração do Kremlin deveria, supostamente, apenas facilitar o trabalho do presidente; sob a égide de
Putin, porém, virou um órgão
não-eleito de poder real, exatamente como era o Comitê Central
do Partido Comunista".
No front doméstico, a ascensão
dos "siloviki" significa que eles
devem buscar aumentar sua influência sobre o processo democrático, através do controle de instituições importantes. Andrei
Przhezdomsky, um antigo funcionário da KGB, dirige a Fundação Russa por Eleições Livres,
uma organização que supervisionou as eleições parlamentares de
dezembro e fará o mesmo com o
pleito presidencial de março.
Em entrevista recente, Przhezdomsky descreveu os antigos funcionários da KGB como ""a parte
mais bem informado, mais bem
preparada, mais sóbria e mais democrática" da sociedade russa.
Entretanto vários partidos, incluindo o Comunista, alegam que
os resultados das eleições parlamentares foram fraudadas em favor do Partido Rússia Unida, pró-Putin. Enquanto isso, observadores internacionais diziam que as
eleições de dezembro foram livres, mas não justas, em vista da
cobertura televisiva parcial dada
ao Partido Rússia Unida pelos canais controlados pelo Estado.
Guerra Fria
A influência dos "siloviki" também vai atrasar ainda mais qualquer processo político de paz na
Tchetchênia, onde a Rússia está
atolada há quase dez anos. O establishment militar russo enxergaria qualquer processo de paz como perda de prestígio.
Na política externa, as sugestões
que remetem à Guerra Fria, já audíveis em parte do discurso russo
em relação ao Ocidente, vão ganhar força. Numa política que
guarda todos os marcos da influência dos "siloviki", a Rússia
vem adiando a retirada de suas
tropas da Geórgia, onde se encontram estacionadas desde os tempos soviéticos. Ela também repreendeu o Parlamento Europeu
pela preocupação que manifesta
em relação às violações dos direitos humanos na Tchetchênia.
Mas é nos negócios e na economia que os "siloviki" poderão deixar seu marco mais duradouro.
O poder crescente desse setor
deverá afetar os investimentos estrangeiros na Rússia. Apostar em
serviços e na abertura de linhas de
produção não deverá ser problema para empresas estrangeiras.
Mas a aquisição de participações
grandes em empresas de recursos
naturais, como fez a British Petroleum quando comprou 50% da
petrolífera TNK, pode revelar-se
bem mais difícil.
O que mais ameaça o ambiente
empresarial, porém, talvez seja o
clima de medo que se espalha pela
comunidade de negócios russa.
Os "siloviki" têm condições de
manter a maioria dos oligarcas
russos num clima de medo de serem processados.
Até que ponto os "siloviki" poderão avançar na busca de alcançar seus objetivos vai depender
quase inteiramente do maior "silovik" de todos: o próprio Putin.
Lilia Shevtsova, do Centro Carnegie Moscou, confia que Putin poderá refrear os "siloviki" quando
assim decidir. "Putin não quer se
tornar refém dos "siloviki'", disse
ela. "Ele os usará como cães de
guarda, mas nunca lhes entregará
o controle político total."
Tradução de Clara Allain
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