São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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KREMLIN

Presidente restabelece o poder dos serviços de segurança, dando-lhes influência política e lugar destacado na máquina estatal

Sob Putin, Estado russo privilegia o medo

ARKADY OSTROVSKY
DO "FINANCIAL TIMES"

Antes de assumir a Presidência russa, em 2000, Vladimir Putin levou flores ao túmulo do ex-chefe da KGB e posterior secretário-geral do Partido Comunista Iuri Andropov (1982-84), no Kremlin, e reinstalou uma placa em memória de Andropov na sede da temida polícia secreta soviética.
A restauração da placa, que tinha sido retirada após a queda da URSS, foi recebida com indignação por setores que tinham sofrido sob o regime comunista. Para os membros do serviço de segurança russo passado e presente, porém, ela assinalava uma esperança de tempos melhores por vir.
Essas esperanças não foram vãs. Nos últimos quatro anos, Putin -antigo oficial da KGB e homem que, cada vez mais, vem sendo visto como herdeiro espiritual de Andropov- devolveu aos serviços de segurança seu poder antigo e os princípios de ordem, disciplina e controle estatal rígido tão caros a Andropov. Após uma década de humilhação e empobrecimento, o Serviço Federal de Segurança (FSB), sucessor da KGB, e suas organizações irmãs gozam de influência política maior do que tiveram em qualquer momento desde o fim da URSS.
Alguns dos ""siloviki" -plural de termo relativo a poder em russo, que abrange os promotores, a polícia, os militares e os integrantes dos serviços de segurança- assumiram cargos de importância na política russa, ajudando Putin, antigo chefe da FSB, a montar sua base de poder pessoal.
Com a quase certeza de sua vitória na eleição presidencial marcada para 14 de março, muitos temem que, nos próximos anos, o domínio dos "siloviki" vá se fortalecer, levando a efeitos nocivos para a jovem democracia russa e a incipiente economia de mercado.

Regime autoritário
Putin fortaleceu ainda mais seu poder na terça-feira, quando demitiu seu premiê, Mikhail Kasyanov, abrindo o caminho para a indicação de um novo gabinete.
Enquanto isso, a guerra contínua contra os separatistas na Tchetchênia e atentados terroristas em Moscou vêm sendo aproveitados pelos "siloviki" para exigir poderes adicionais para as forças de segurança. Mas a influência dos "siloviki" se estende para muito além de questões relacionadas diretamente à segurança, chegando ao sistema judiciário, às empresas, à economia, à mídia e à política externa.
O controle que exercem sobre o poder não significa que esteja ocorrendo uma volta ao sistema totalitário de estilo soviético. Tampouco assinala o fim da economia de mercado: após dez anos de reformas, as vantagens do capitalismo em relação ao planejamento central são evidentes demais. Mas a crescente influência dos "siloviki" significa, sim, que a Rússia se dirige a um regime mais autoritário, no qual o processo democrático e o funcionamento do mercado são subordinados aos órgãos do poder estatal.
""A Rússia ainda possui os atributos de uma democracia, mas, gerida pelos "siloviki", essa democracia pode virar ilusória", diz a socióloga Olga Kryshtanovskaya.
Para muitos na Rússia, o poder crescente dos "siloviki" reacende memórias incômodas sobre como o medo dos serviços de segurança era algo sempre presente no sistema soviético. ""O medo e a intolerância eram a principal ideologia do Estado soviético. A volta desse medo é um dos aspectos mais preocupantes da Rússia de hoje", diz Alexander Yakovlev, assessor de Mikhail Gorbatchov, o último presidente da URSS, e ex-membro do Politburo soviético. No âmbito internacional, o poder dos "siloviki" e as tendências autoritárias na Rússia provocam receios crescentes.
Quando Putin chegou ao poder, em 2000, três forças políticas disputavam a influência maior no país. Um grupo consistia de economistas liberais indicados por Putin para implementar reformas; um segundo incluía antigos colegas de Putin de São Petersburgo, onde o presidente iniciara sua carreira na KGB, e o terceiro grupo abrangia pessoas da órbita de Boris Ieltsin, o presidente anterior. Hoje, quatro anos mais tarde, os economistas liberais perderam boa parte de sua influência, e os integrantes do grupo de Ieltsin praticamente desapareceram.
O sinal mais visível do domínio dos "siloviki" foi o ataque lançado em 2003 contra Mikhail Khodorkovsky, oligarca dotado de ambições políticas e antigo presidente da Yukos, a maior companhia petrolífera da Rússia. Khodorkovsky foi preso em outubro, acusado de fraude e sonegação de impostos, e sua participação acionária na Yukos foi congelada.
Os "siloviki" não formam um bloco homogêneo: existem rivalidades de longa data entre os serviços de segurança, o Exército e o Ministério do Interior. Mas eles estão unidos na defesa da supremacia de um Estado forte e se vêem como seus guardiães.
"O principal objetivo do bloco dos "siloviki" é comprovar a força do poder do Estado no país e mostrar que ninguém pode estar acima do Estado", diz Gennady Gudkov, ex-agente da KGB que dirige uma empresa de segurança.
Para muitos no FSB e no Exército, foi essa a justificativa do ataque a Khodorkovsky. Igor Goloshchapov, antigo oficial de uma unidade de contra-inteligência da KGB, explica: "Khodorkovsky tentou privatizar a Duma e formar seu lobby próprio. Ele desafiou o próprio fundamento do Estado".

Vingança
Mas não é apenas o sentimento patriótico que move os "siloviki". Eles são motivados também pela oportunidade de conseguir vingança, depois de perder seus privilégios e seu status social de elite.
Em agosto de 1991, na tentativa de preservar seu poder político num momento em que a URSS começava a desabar, alguns dirigentes da KGB lideraram uma tentativa de golpe contra Gorbatchov. Mas o levante fracassou, e em seu último dia uma multidão de milhares de pessoas aplaudiu quando um guindaste removeu uma estátua do fundador da KGB, Felix Dzerzhinsky, da frente da sede da organização -um ato visto dentro da KGB como traição.
Quando Gorbatchov retornou da prisão domiciliar que lhe tinha sido imposta, prometeu pôr fim àquele ""Estado dentro do Estado". Jornais russos da época pediram que a KGB fosse ""liquidada".
Entretanto o que se seguiu não foi uma abolição, e sim uma tentativa de reforma. A KGB ganhou um nome novo e foi dividida em uma série de agências independentes. Milhares de seus funcionários foram desligados. Muitos chefes acabaram trabalhando para os empresários que ficaram sendo conhecidos como oligarcas. Outros montaram empresas privadas de segurança. Aqueles que permaneceram na KGB passaram a receber salários míseros e, ao mesmo tempo, viam os oligarcas embolsar bilhões de dólares, abocanhando participações nas estatais privatizadas.

A hora dos "siloviki"
De acordo com Olga Kryshtanovskaya, "com a eleição de Putin, os "siloviki" estão sentindo que sua hora chegou". O ressurgimento do poder da KGB teve início ainda no governo de Ieltsin (1991-99) -afinal, foi ele quem indicou Putin para presidente em exercício quando renunciou inesperadamente, no final de 1999.
De acordo com um estudo de Kryshtanovskaya, a proporção de "siloviki" nos escalões mais altos do poder do Kremlin subiu de 4,8%, sob Gorbatchov, para 58,3% sob Putin. Mais da metade do "politburo" informal de Putin, formado por 24 integrantes, é de "siloviki". No Kremlin, segundo a socióloga, 1 em cada 3 funcionários tem passado militar ou saiu dos serviços de segurança.
Segundo Yakovlev, "a administração do Kremlin deveria, supostamente, apenas facilitar o trabalho do presidente; sob a égide de Putin, porém, virou um órgão não-eleito de poder real, exatamente como era o Comitê Central do Partido Comunista".
No front doméstico, a ascensão dos "siloviki" significa que eles devem buscar aumentar sua influência sobre o processo democrático, através do controle de instituições importantes. Andrei Przhezdomsky, um antigo funcionário da KGB, dirige a Fundação Russa por Eleições Livres, uma organização que supervisionou as eleições parlamentares de dezembro e fará o mesmo com o pleito presidencial de março.
Em entrevista recente, Przhezdomsky descreveu os antigos funcionários da KGB como ""a parte mais bem informado, mais bem preparada, mais sóbria e mais democrática" da sociedade russa. Entretanto vários partidos, incluindo o Comunista, alegam que os resultados das eleições parlamentares foram fraudadas em favor do Partido Rússia Unida, pró-Putin. Enquanto isso, observadores internacionais diziam que as eleições de dezembro foram livres, mas não justas, em vista da cobertura televisiva parcial dada ao Partido Rússia Unida pelos canais controlados pelo Estado.

Guerra Fria
A influência dos "siloviki" também vai atrasar ainda mais qualquer processo político de paz na Tchetchênia, onde a Rússia está atolada há quase dez anos. O establishment militar russo enxergaria qualquer processo de paz como perda de prestígio.
Na política externa, as sugestões que remetem à Guerra Fria, já audíveis em parte do discurso russo em relação ao Ocidente, vão ganhar força. Numa política que guarda todos os marcos da influência dos "siloviki", a Rússia vem adiando a retirada de suas tropas da Geórgia, onde se encontram estacionadas desde os tempos soviéticos. Ela também repreendeu o Parlamento Europeu pela preocupação que manifesta em relação às violações dos direitos humanos na Tchetchênia.
Mas é nos negócios e na economia que os "siloviki" poderão deixar seu marco mais duradouro.
O poder crescente desse setor deverá afetar os investimentos estrangeiros na Rússia. Apostar em serviços e na abertura de linhas de produção não deverá ser problema para empresas estrangeiras. Mas a aquisição de participações grandes em empresas de recursos naturais, como fez a British Petroleum quando comprou 50% da petrolífera TNK, pode revelar-se bem mais difícil.
O que mais ameaça o ambiente empresarial, porém, talvez seja o clima de medo que se espalha pela comunidade de negócios russa. Os "siloviki" têm condições de manter a maioria dos oligarcas russos num clima de medo de serem processados.
Até que ponto os "siloviki" poderão avançar na busca de alcançar seus objetivos vai depender quase inteiramente do maior "silovik" de todos: o próprio Putin. Lilia Shevtsova, do Centro Carnegie Moscou, confia que Putin poderá refrear os "siloviki" quando assim decidir. "Putin não quer se tornar refém dos "siloviki'", disse ela. "Ele os usará como cães de guarda, mas nunca lhes entregará o controle político total."


Tradução de Clara Allain


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