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ARTIGO
Um outro lado de Ieltsin
Num país onde relações pessoais resvalam para a esfera pública, aspectos da personalidade do presidente explicam desenlaces políticos do pós-comunismo
ANGELO SEGRILLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A cobertura jornalística do
dia seguinte à morte do presidente russo Boris Ieltsin, na última segunda, tocou nos principais pontos de sua carreira política. Entretanto, para os interessados, é possível ir além, a
um nível mais pessoal e íntimo,
simplesmente lendo as autobiografias que ele escreveu:
"Diários da Meia-Noite", "Contra a Corrente" e "Minha Luta
pela Rússia".
Por exemplo, pouca gente sabe que Boris, como Lula, não
apenas compartilha os boatos
de bebida excessiva mas também perdeu dois dedos da mão
esquerda em uma travessura
infantil com uma granada durante a guerra.
Esse não é um mero detalhe
pitoresco. Como o próprio relata, sempre foi emblematicamente "levado da breca". Isso
lhe valeria uma expulsão da escola e vários choques em sua
carreira inicial no partido. O rebelde sem causa se transformaria em rebelde com causa na
perestroika.
Em 1985, Mikhail Gorbatchov traria Ieltsin e outros líderes "jovens" reconhecidamente
dinâmicos a Moscou para ajudá-lo a vencer as resistências
no deslanchamento daquele
processo. Entretanto, Ieltsin
era mais radical que o próprio
Gorby, e dois anos depois entrariam em choque a respeito
da velocidade das mudanças.
Na Rússia, como no Brasil, as
relações pessoais amiúde interferem na coisa pública. Assim,
os diários de Ieltsin são importantes por narrar os detalhes
internos de como aconteceu a
aproximação e o distanciamento com Gorbatchov.
Ajudam também a entender
o complicado momento posterior nas primeiras eleições parlamentares "livres" da União
Soviética, em março de 1989,
quando Ieltsin ainda formalmente no Partido Comunista
se alia aos democratas (opositores liberais de fora do PC),
formando o primeiro bloco de
oposição parlamentar em 70
anos (o Grupo Inter-regional).
O fato de Ieltsin não ser totalmente democrata nem comunista ajuda a explicar muito de
seu comportamento ambíguo
posterior. Como presidente, ele
levaria a Rússia pós-soviética
na direção geral da democracia
política, mas ocasionalmente
utilizando métodos autoritários (como quando mandou canhonear o Parlamento para resolver o impasse entre presidente e deputados em outubro
de 1993).
(Defesa da) Democracia à
força ou à bala geralmente se
revela problemática, como demonstram os exemplos do Iraque, do Brasil de 1964 ou da
Rússia atual de Vladimir Putin.
"Terapia de choque"
As entrelinhas da biografia
de Ieltsin também deixam claro que a opção da Rússia por
uma "terapia de choque" para a
passagem do socialismo ao capitalismo foi uma opção consciente e pensada. Não foi, como
dizem alguns, um erro de cálculo. Os críticos argumentam que
uma transformação mais gradual evitaria muitos dos traumas, distorções e injustiças
ocorridos durante a gigantesca
privatização feita às pressas.
Mas o gradualismo não era
opção para a equipe econômica
do ex-presidente. Segundo sua
lógica, já que a transformação
seria dolorosa, que ela fosse feita de maneira rápida para que a
dor não se prolongasse. E, sobretudo, era uma visão de que a
economia não podia ser separada da política: uma transição
prolongada demais poderia dar
espaço para que a forças de resistência se fortalecessem e talvez até impedissem a finalização da passagem ao novo sistema. Assim, o mito do "erro de
cálculo" é desfeito: a terapia de
choque foi uma opção política.
Por último, a fama da saúde
fraca de Ieltsin necessita de
qualificações. Ele foi bastante
robusto, saudável (para alguém
que bebe) e esportivo na maior
parte da sua vida. O problema
foi que, em 1996, quando teve
problemas cardíacos, em vez de
interromper a duríssima corrida à reeleição decidiu prosseguir à revelia. Resultado: quatro pontes de safena que o afetariam de maneira indelével
posteriormente.
A Rússia também ficou indelevelmente marcada quando
ele saiu do cargo.
ANGELO SEGRILLO é professor de história na
USP e autor de "Rússia e Brasil em Transformação" (7Letras) e "O Declínio da URSS: Um Estudo das Causas" (Record)
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