São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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ARTIGO

Obsessão pelos EUA atrapalha nosso julgamento

TIMOTHY GARTON ASH

A crise em torno do Iraque é realmente um crise em torno do Iraque? A julgar pelas reações dos últimos 15 dias, a resposta está clara: não, ela tem a ver com os EUA. Para boa parte da esquerda européia, a guerra contra o Iraque deve ser uma coisa negativa, porque a América de Bush é a favor dela. Para boa parte da direita britânica, ela deve ser uma coisa boa, já que a América de Bush é a favor dela. Tony Blair, o homem que tenta agradar à esquerda e à direita, está mais uma vez se esforçando para fazer a abertura de pernas -mas, de tão esticadas, suas pernas já devem estar doloridas. Seu amigo Gerhard Schröder venceu uma eleição alemã apertada opondo resistência aos EUA em nome da ""paz". A política francesa, como de costume, é tudo uma questão de posicionamento cripto-gaullista em relação a Washington. Rússia e China são contra a guerra -principalmente por causa dos EUA. Diga-me qual é sua América e eu lhe direi como você se posiciona.
Você talvez diga que isso é inevitável. Quando o país mais poderoso na história do mundo tem uma agenda missionária de interesse nacional, presente já na criação da administração Bush, mas aprofundada e ampliada pelos ataques de 11 de setembro até transformar-se num sentimento nacional de estar ""em estado de guerra", qualquer engajamento externo dirá respeito a isso -e a mesma coisa se aplica à reação que suscitar. Mas esta também constitui uma ameaça ao pensamento claro e racional. A obsessão pelos EUA -não apenas com a política atual de Washington, mas com os EUA existentes em nossa cabeça- pode atrapalhar nosso julgamento. Portanto, comece por tomar um dose reforçada do espírito de George Orwell, para limpar os condutos mentais. Depois, procure repetir lenta e claramente, se você for de esquerda, ""pode ser a opção certa, mesmo que os EUA estejam a favor dela", ou, se você for de direita, "pode ser a alternativa errada, mesmo que os EUA a defendam".
Na minha opinião, foi a escolha certa usar a ameaça da força para levar Saddam Hussein a aceitar a volta dos inspetores de armas da ONU. Ele é um tirano perigoso. Vem desprezando as resoluções da ONU há mais de dez anos, desde o fim da Guerra do Golfo. Ele está tentando construir armas de destruição em massa. Quatro anos sem inspeções é tempo demais, e duvido muito que ele teria permitido a volta dos inspetores se os EUA não tivessem agitado suas armas.
Essas inspeções da ONU devem ser rigorosas e mexer em tudo, sem restrições, e garantias implementáveis de segurança devem ser dadas àqueles que fornecerem informações aos inspetores, possivelmente com o direito de emigração subsequente. As inspeções devem terminar no desarmamento nuclear, químico e biológico. Isso é muito para se pedir de um país soberano? Sim, é muito. Mas precisamos de um mundo em que a soberania seja limitada por algumas normas internacionais básicas, um mundo no qual um Saddam, um Milosevic, um Pinochet ou um Idi Amin saibam que podem ir até certo ponto, mas não além dele, senão seus países serão bombardeados e eles terminarão submetidos ao tribunal de Haia.
O problema para nós, internacionalistas liberais, é o seguinte: essas bravas e boas idéias do mundo pós-Guerra Fria já se emaranharam completamente, especialmente no mundo pós-11 de setembro, com idéias dos EUA, nos EUA e sobre eles. As idéias que a direita americana nutre sobre autodefesa agressiva e busca unilateral, até mesmo declaradamente neo-imperialista, de seus interesses nacionais, em nome do Deus -que confere todo um novo significado à expressão ""cristianismo com músculos". Um sentimento americano muito mais amplo de estar em guerra. Mas, mais ainda, as visões críticas, hostis, às vezes obsessivas e até mesmo paranóicas sobre os Estados Unidos, presentes no resto do mundo.
Essa confusão e esse emaranhado fatídicos correm o risco de jogar um grande empreendimento por terra. Tomemos o caso do Tribunal Penal Internacional, por exemplo. Este jamais terá credibilidade a não ser que os Estados Unidos tomem parte nele e submetam militares americanos a sua jurisdição. Ou tomemos o caso da chamada "intervenção humanitária". Foi totalmente certo intervirmos militarmente na Bósnia -muito tarde demais- e em Kosovo, e foi uma tragédia não termos feito o mesmo para interromper o genocídio em Ruanda. As motivações políticas das intervenções foram mistas em todos esses casos, é claro. Sempre são. Quando políticos fazem a coisa certa, muito frequentemente o fazem pelas razões erradas. Mas havia uma justificativa moral clara e crescente. Esta dizia que, quando um país mergulha em algo que se aproxima do genocídio, com a matança ou "limpeza étnica" de grande número de seus habitantes, então outros países têm o direito e o dever de impedir que continue. Sempre que possível, devem fazê-lo com o respaldo de uma resolução da ONU. Mas, em vista do que russos e chineses cometem em seus próprios quintais, e levando em conta suas atitudes em relação aos Estados Unidos, nem sempre será possível contar com uma resolução da ONU -como aconteceu em Kosovo. A campanha de Kosovo foi descrita ironicamente como ""ilegal, porém legítima".
O limiar exigido para justificar tal intervenção humanitária é muito alto -algo que se aproxime do genocídio. Hoje, essa lógica está sendo rebaixada pelo fato de ser evocada para justificar uma possível ação anglo-americana no Iraque. Tony Blair recentemente evocou os pavorosos ataques com gás em Halabja, o massacre e a fuga de centenas de milhares de curdos. Eles teriam sido os kosovares albaneses do norte do Iraque, por assim dizer. Sim, isso foi algo que se aproximou do genocídio -mas aconteceu em 1988, e não fizemos nada para impedi-lo. Quando os curdos iraquianos se revoltaram, com nosso incentivo, após a Guerra do Golfo, e as tropas de Saddam mais uma vez se prepararam para esmagá-los, o sentimento de vergonha nos obrigou a impor uma zona de exclusão aérea que hoje protege um Curdistão semi-autônomo. O regime de Saddam é extremamente repressor e cruel. Mas, em vista da zona de exclusão aérea, seus crimes não chegam perto do limiar que justifica a intervenção humanitária pela força. Tentar justificar a ação desta maneira apenas compromete a idéia toda de intervenção humanitária.
E há a questão das inspeções de armas. Mais uma vez, trata-se de uma idéia realmente boa para o mundo. Reflita sobre o seguinte: você poderá assistir a uma guerra nuclear em algum momento de sua vida. À medida que as armas nucleares se proliferam e tornam-se mais fáceis de fabricar e transportar, aumentam as chances de que algum terrorista ou ditador as utilize. É difícil prevenir essa possibilidade. É provável que aconteça. Mas uma maneira de reduzir as chances disso é contar com uma norma internacional de inspeções rigorosas e completas. A Fundação Carnegie pela Paz, em Washington, propôs que tais "inspeções coercivas" sejam respaldadas por uma força militar multinacional da ONU que seria treinada especificamente para esse fim. É claro que essa força nunca seria autorizada a vasculhar livremente os locais de armazenamento de armas nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Rússia ou na China, mas estes são países estáveis e, na realidade, muito menos propensos a fazer uso de suas armas nucleares. Os países instáveis sempre irão se contorcer e esquivar, como fará Saddam. Mas a chance de que tais inspeções possam ganhar aceitação internacional mais ampla está começando a diminuir, porque elas estão sendo largamente vistas como ferramenta de uma política americana agressiva. São vistas assim com ou sem razão? De certo modo, a resposta não tem importância. A percepção que se tem é que é a realidade.
Assim, é esse o nosso dilema. É uma coisa boa e necessária fazer o exercício mental orwelliano (no sentido positivo) de perguntar: "O que eu pensaria disso se os Estados Unidos não estivessem envolvidos?". Mas eles estão envolvidos, praticamente em toda parte. No mundo real, não é possível simplesmente dizer "deixemos os Estados Unidos fora disto". Assim, se a associação com a América de George W. Bush está sujando a imagem deste projeto internacionalista liberal, o que fazemos? Tentamos moderar a posição dos EUA e apelar para as outras Américas que certamente continuam a existir? Tentamos construir uma voz européia mais forte? Sim, as duas coisas. E, desse modo, acabamos como Tony Blair, fazendo abertura de pernas. É altamente incômodo.


Timothy Garton Ash é diretor do Centro de Estudos Europeus no St. Anthony's College, na Universidade de Oxford (Reino Unido). É autor de "Nós, o Povo" (Companhia das Letras) e "History of the Present" (Penguin), entre outros

Tradução de Clara Allain



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