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O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO
Projeto iluminista da organização busca criar um país numa região que foi sucessivamente colonizada, invadida e destruída
ONU tenta fixar a democracia em Timor
CONTARDO CALLIGARIS
ENVIADO ESPECIAL A TIMOR LESTE
Timor Leste é o laboratório de
um grandioso projeto da razão
-certamente o mais ambicioso
na história da ONU. Trata-se de
fazer com que um país democrático surja numa terra que foi colônia, território ocupado e depois
sistematicamente destruída.
Espera-se demonstrar que é
possível criar, segundo a razão,
uma verdadeira democracia e que
o empreendimento pode ser obra
do esforço conjunto da comunidade internacional.
Muitos, sobretudo técnicos a
serviço da ONU, se queixam da
lentidão de sua máquina administrativa. Observam que as coisas
seriam mais fáceis se cada função
fosse atribuída à competência de
funcionários de um país só.
Exemplo do potencial de confusão: os 1.300 homens da polícia civil da ONU (Civipol) são de 42
países.
A dificuldade não é só linguística. É preciso conciliar estilos diferentes de administração, de comando e de ação. A necessidade
dessa pluralidade incômoda é
questionada. Mas ela é um primeiro sonho iluminista: o da cooperação racional possível entre
homens e mulheres de nações, etnias e culturas diferentes.
O segundo sonho é a pretensão
de plasmar a realidade política e
social segundo as exigências da
razão. O caminho escolhido, neste caso, naturalmente, é a educação. É urgente formar juízes e advogados, antes mesmo que seja
decidido qual será o código penal
e civil que o país adotará. É preciso produzir elites técnicas, administrativas e pedagógicas. Foram
fundadas às pressas uma escola
de administração e uma academia de polícia.
A academia acaba de formar a
sua terceira turma. Está localizada
no antigo quartel-general da polícia indonésia, em Dili, onde ainda
existe, intacta, a cela onde o líder
da independência Xanana Gusmão passou momentos difíceis.
Vale como lembrança: afinal,
lembra o major Lima Castro, um
dos 13 PMs brasileiros da Civipol,
"os jovens que entram na academia só conheceram os abusos repressivos da polícia de ocupação", nunca lidaram com uma
polícia democrática.
A dificuldade do ensino consiste em passar ao mesmo tempo
confiança na autoridade policial e
respeito em relação aos direitos
dos cidadãos.
Mas o maior empreendimento é
a difusão entre a população de todo um espírito democrático antes
das eleições gerais previstas para
o fim de 2001 ou o começo de
2002. A ONU, na hora de inventar
uma democracia, decidiu instruir
os eleitores para combater a ignorância política dos votantes. A população timorense (mais de 50%
analfabeta) terá aulas de educação
cívica.
A Divisão de Assuntos Eleitorais e Constitucionais da Untaet
(sigla, em inglês, para Administração Transitória das Nações
Unidas em Timor Leste) redigiu
três apostilas: "Glossário de Educação Cívica", "Informações sobre o Significado da Democracia"
e "Informações sobre a Democracia Representativa". Com esses
textos foi treinada uma turma de
educadores que têm a tarefa de espalhar a consciência democrática
pelo território timorense.
Curiosamente, nas três apostilas
não há nenhuma referência ao
"suco"-palavra tetum (língua
local) que designa as assembléias
populares de bairro e de aldeias.
Elas são o sistema espontâneo e
democrático de autogoverno da
cultura timorense. Prova de que o
iluminismo às vezes é deslumbrado pelo brilho excessivo da razão
(abstrata).
Timor tornou-se também alvo
de uma generosidade internacional inédita.
Segundo uma lista não atualizada, atuam na região 121 organizações não-governamentais com registro timorense e 73 com registro
internacional: quase 200 ONGs
trabalhando com e para uma população de cerca de 753 mil pessoas. É fácil ironizar a situação, dizer que as centenas de computadores usados pelas ONGs seriam
mais bem empregadas nas futuras escolas timorenses. Ou que
suas centenas de funcionários hiperqualificados, em vez de consagrar milhares de horas à redação
de relatórios para captação de recursos, talvez pudessem ser mais
bem aproveitadas.
A irmã Valéria Resende, brasileira, da Rede de Educadores Populares do Nordeste, esteve em
Timor durante um mês a convite
de Loa Ramotuk, da Caminhando
Juntos -uma ONG timorense
cujo propósito é monitorar o trabalho das outras ONGs. Ela notou
um descompasso entre a imensa
generosidade e seus poucos efeitos concretos. Por exemplo, numa
situação de penúria de produtos
de limpeza, a irmã estranhou que
ninguém ensinasse à população
uma técnica simples de fazer sabão com soda cáustica. Ela mesma passou a divulgar essa sabedoria prática. Em suma, a generosidade pode ser tão abstrata quanto
o sonho iluminista.
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