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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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IRAQUE

Museus foram bombardeados em Bagdá, Mossul e Tikrit, e resistência iraquiana usa sítios arqueológicos do sul do país como ponto de tiro

Patrimônio em destruição

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Pouco se sabe sobre o destino do patrimônio cultural do Iraque desde o início da guerra. Museus foram bombardeados em Mossul, Tikrit e Bagdá. Há trincheiras no jardim do museu de antiguidades da capital, que guarda relíquias da Mesopotâmia. Uma universidade do século 13 foi atingida. No sul, a resistência iraquiana usa sítios arqueológicos como pontos de tiro. O resto é um mistério.
"Os britânicos e os americanos se recusam a dar qualquer tipo de informação. E não conseguimos falar com nossos colegas em Bagdá", disse à Folha a arqueóloga Eleanor Robson, da Escola Britânica de Arqueologia no Iraque, da Universidade de Oxford. Mas a tragédia científico-cultural no Iraque já começou. E foi anunciada.
Há mais de um mês, Robson e seus colegas mandaram cartas ao governo britânico declarando que monumentos arqueológicos não deveriam ser alvo militar. Sem resposta. Nos EUA, a Associação Americana de Pesquisa no Iraque entregou ao Pentágono uma lista com as coordenadas de 4.000 sítios, que deveriam ser poupados dos bombardeios. Sem resposta.

Berço
Os invasores estão descumprindo a Convenção sobre Proteção ao Patrimônio Cultural por Ocasião de Guerra, assinada em Haia em 1954 -e jamais ratificada pelos EUA e pelo Reino Unido.
No caso do Iraque, a situação é especialmente delicada, porque o país está sentado sobre 8.000 anos de história. Foi ali, na região entre os rios Tigre e Eufrates -a Mesopotâmia-, que surgiram a agricultura, a escrita, as primeiras cidades do chamado Crescente Fértil e o primeiro sistema legal escrito, o Código de Hamurabi.
Sumérios, babilônicos, assírios, persas, gregos, partos e mongóis se sucederam na região. Mas, antes deles, sítios pré-históricos dos períodos Paleolítico e Neolítico guardam informações valiosas sobre a origem da civilização. Há indícios de que a guerra "cirúrgica" dos EUA contra o regime de Saddam Hussein já esteja comprometendo esses sítios.
"A resistência que os EUA têm encontrado no seu avanço vem, em sua maior parte, de terrenos elevados. Quase todos eles são sítios arqueológicos", disse à Folha o arqueólogo McGuire Gibson, da Universidade de Chicago.
Esse tipo de elevação, conhecida em árabe como "tell", costuma esconder de pedras lascadas a muros de antigas cidades e zigurates. O tamanho do estrago só poderá ser avaliado no pós-guerra.
As maiores preocupações de Gibson são com a capital, Bagdá, e a região num raio de 30 km dela. "Há milhares de sítios nessa área, e lá vai ser a luta de verdade."
No Museu Iraquiano, em cujo jardim as tropas de Saddam Hussein já cavaram trincheiras, há peças de 5.000 anos de idade. Uma delas é a base do trono do rei Salmanasar, citado no 2º Livro dos Reis. "Não sabemos se a peça ainda está lá", diz a arqueóloga britânica, que está reunindo na internet (users.ox.ac.uk/wolf0126) informações sobre o patrimônio iraquiano ameaçado.
O museu bombardeado de Mossul guardava objetos das cidades assírias de Nínive e Nimrud (séculos 7º a 9º a.C), assim como material islâmico antigo. Muitos dos artefatos haviam sido retirados e guardados antes da guerra. "Mas há objetos como um leão alado do portal de Nínive, que eram grandes demais para serem removidos", disse Robson.
Na linha de tiro também está o zigurate (construção piramidal) da cidade suméria de Uruk, que fica perto de Nassiriah -palco de combates sangrentos na guerra.
Mas o que mais tira o sono dos arqueólogos é o pós-guerra. Com o Iraque arrasado, famílias em busca de sobrevivência devem saquear museus e sítios arqueológicos. Há mercado certo para as relíquias no Japão, na Suíça e nos EUA -países que não ratificaram outra convenção da Unesco sobre comércio de bens culturais.
"Depois da Guerra do Golfo [em 1991" dez museus foram destruídos e 4.000 peças sumiram do Iraque", afirma Ken Matsumoto, arqueólogo da Universidade de Kokushikan, no Japão.

Agenda secreta
O pior: há um lobby nos EUA pelo relaxamento da Lei de Antiguidades do Iraque, considerada "retencionista" pelos colecionadores americanos.
Em entrevista à revista "Science", em janeiro, o tesoureiro do Conselho Americano de Política Cultural, William Pearlstein, diz que espera uma "administração cultural pós-Saddam sensível", que "certifique alguns objetos para exportação". O conselho congrega colecionadores e comerciantes de arte e se reuniu com o Pentágono antes da guerra.
A conservação do patrimônio talvez seja o único aspecto da administração de Saddam Hussein que deixará saudades no Ocidente. O Iraque -que viu tesouros como a porta babilônica de Ishtar serem exportados e exibidos no exterior- tem uma das leis de antiguidades mais severas do mundo, que o ditador faz cumprir com rigor, para se gabar de que o Iraque já tinha uma civilização 5.000 anos antes dos EUA.
É bem verdade que Saddam fez restaurações no mínimo duvidosas em Hatra, no zigurate de Ur e em Babilônia, com tijolos de adobe pintados em cores berrantes -e até uma inscrição cuneiforme com louvores ao ditador.
"É kitsch, um crime contra o bom gosto", disse Robson. "Mas as restaurações iraquianas são reversíveis em seus efeitos. Mísseis de cruzeiro americanos não são."

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