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IRAQUE
Museus foram bombardeados em Bagdá, Mossul e Tikrit, e resistência iraquiana usa sítios arqueológicos do sul do país como ponto de tiro
Patrimônio em destruição
CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA
Pouco se sabe sobre o destino
do patrimônio cultural do Iraque
desde o início da guerra. Museus
foram bombardeados em Mossul,
Tikrit e Bagdá. Há trincheiras no
jardim do museu de antiguidades
da capital, que guarda relíquias da
Mesopotâmia. Uma universidade
do século 13 foi atingida. No sul, a
resistência iraquiana usa sítios arqueológicos como pontos de tiro.
O resto é um mistério.
"Os britânicos e os americanos
se recusam a dar qualquer tipo de
informação. E não conseguimos
falar com nossos colegas em Bagdá", disse à Folha a arqueóloga
Eleanor Robson, da Escola Britânica de Arqueologia no Iraque, da
Universidade de Oxford. Mas a
tragédia científico-cultural no Iraque já começou. E foi anunciada.
Há mais de um mês, Robson e
seus colegas mandaram cartas ao
governo britânico declarando que
monumentos arqueológicos não
deveriam ser alvo militar. Sem
resposta. Nos EUA, a Associação
Americana de Pesquisa no Iraque
entregou ao Pentágono uma lista
com as coordenadas de 4.000 sítios, que deveriam ser poupados
dos bombardeios. Sem resposta.
Berço
Os invasores estão descumprindo a Convenção sobre Proteção
ao Patrimônio Cultural por Ocasião de Guerra, assinada em Haia
em 1954 -e jamais ratificada pelos EUA e pelo Reino Unido.
No caso do Iraque, a situação é
especialmente delicada, porque o
país está sentado sobre 8.000 anos
de história. Foi ali, na região entre
os rios Tigre e Eufrates -a Mesopotâmia-, que surgiram a agricultura, a escrita, as primeiras cidades do chamado Crescente Fértil e o primeiro sistema legal escrito, o Código de Hamurabi.
Sumérios, babilônicos, assírios,
persas, gregos, partos e mongóis
se sucederam na região. Mas, antes deles, sítios pré-históricos dos
períodos Paleolítico e Neolítico
guardam informações valiosas
sobre a origem da civilização. Há
indícios de que a guerra "cirúrgica" dos EUA contra o regime de
Saddam Hussein já esteja comprometendo esses sítios.
"A resistência que os EUA têm
encontrado no seu avanço vem,
em sua maior parte, de terrenos
elevados. Quase todos eles são sítios arqueológicos", disse à Folha
o arqueólogo McGuire Gibson, da
Universidade de Chicago.
Esse tipo de elevação, conhecida
em árabe como "tell", costuma esconder de pedras lascadas a muros de antigas cidades e zigurates.
O tamanho do estrago só poderá
ser avaliado no pós-guerra.
As maiores preocupações de
Gibson são com a capital, Bagdá, e
a região num raio de 30 km dela.
"Há milhares de sítios nessa área,
e lá vai ser a luta de verdade."
No Museu Iraquiano, em cujo
jardim as tropas de Saddam Hussein já cavaram trincheiras, há peças de 5.000 anos de idade. Uma
delas é a base do trono do rei Salmanasar, citado no 2º Livro dos
Reis. "Não sabemos se a peça ainda está lá", diz a arqueóloga britânica, que está reunindo na internet (users.ox.ac.uk/wolf0126)
informações sobre o patrimônio
iraquiano ameaçado.
O museu bombardeado de
Mossul guardava objetos das cidades assírias de Nínive e Nimrud
(séculos 7º a 9º a.C), assim como
material islâmico antigo. Muitos
dos artefatos haviam sido retirados e guardados antes da guerra.
"Mas há objetos como um leão
alado do portal de Nínive, que
eram grandes demais para serem
removidos", disse Robson.
Na linha de tiro também está o
zigurate (construção piramidal)
da cidade suméria de Uruk, que
fica perto de Nassiriah -palco de
combates sangrentos na guerra.
Mas o que mais tira o sono dos
arqueólogos é o pós-guerra. Com
o Iraque arrasado, famílias em
busca de sobrevivência devem saquear museus e sítios arqueológicos. Há mercado certo para as relíquias no Japão, na Suíça e nos
EUA -países que não ratificaram outra convenção da Unesco
sobre comércio de bens culturais.
"Depois da Guerra do Golfo
[em 1991" dez museus foram destruídos e 4.000 peças sumiram do
Iraque", afirma Ken Matsumoto,
arqueólogo da Universidade de
Kokushikan, no Japão.
Agenda secreta
O pior: há um lobby nos EUA
pelo relaxamento da Lei de Antiguidades do Iraque, considerada
"retencionista" pelos colecionadores americanos.
Em entrevista à revista "Science", em janeiro, o tesoureiro do
Conselho Americano de Política
Cultural, William Pearlstein, diz
que espera uma "administração
cultural pós-Saddam sensível",
que "certifique alguns objetos para exportação". O conselho congrega colecionadores e comerciantes de arte e se reuniu com o
Pentágono antes da guerra.
A conservação do patrimônio
talvez seja o único aspecto da administração de Saddam Hussein
que deixará saudades no Ocidente. O Iraque -que viu tesouros
como a porta babilônica de Ishtar
serem exportados e exibidos no
exterior- tem uma das leis de
antiguidades mais severas do
mundo, que o ditador faz cumprir
com rigor, para se gabar de que o
Iraque já tinha uma civilização
5.000 anos antes dos EUA.
É bem verdade que Saddam fez
restaurações no mínimo duvidosas em Hatra, no zigurate de Ur e
em Babilônia, com tijolos de adobe pintados em cores berrantes
-e até uma inscrição cuneiforme
com louvores ao ditador.
"É kitsch, um crime contra o
bom gosto", disse Robson. "Mas
as restaurações iraquianas são reversíveis em seus efeitos. Mísseis
de cruzeiro americanos não são."
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