São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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TRAGÉDIA HUMANA

Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança, viajou ao país para ampliar ação social

"Impressiona ver angolanos em pele e osso"

PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO

O cessar-fogo alcançado recentemente em Angola revelou uma situação calamitosa, com imagens e números ilustrando o desespero da população, apesar de a trégua na guerra civil ter aberto caminho para a reconstrução do país.
"É impressionante ver mães secas e magras, só pele e osso, amamentando filhos secos, também só pele e osso", afirma Zilda Arns, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, que viajou a Angola para ampliar sua ação social e incentivar o treinamento de voluntários.
"Impressionante" é também o adjetivo que a médica usa para definir a luta pela sobrevivência no país africano de língua portuguesa (herança da colonização) onde até 500 mil pessoas correm risco de morrer de fome, segundo grupos de auxílio humanitário.
"Em Angola, a taxa de mortalidade infantil é de 400 por mil nascidos vivos, e a metade das nossas crianças morre por malária", explica Zilda Arns, 67. No Brasil, é inferior a 30 óbitos para cada mil crianças nascidas vivas.
Apesar de seus ricos recursos -Angola exporta mais petróleo para os EUA que o Kuait-, boa parte do país está em ruínas devido a quase três décadas de guerra civil, que deixaram como legado mais de 1 milhão de mortos.
O governo e membros da Unita (União para a Independência Total de Angola) concordaram, no início de abril, em pôr fim aos combates, após a morte do líder rebelde Jonas Savimbi.
A promessa de paz levou ao menos 80 mil rebeldes da Unita a sair de suas bases em busca de comida e medicamentos, além de facilitar o acesso a áreas anteriormente evitadas por causa da guerra.
"Vimos hospitais com leitos no chão, cheios de doenças facilmente preveníveis", diz Zilda Arns.
Há 18 anos no Brasil, onde conta com 155 mil voluntários e atende mais de 1,6 milhão de crianças, a Pastoral vem adaptando e expandindo sua experiência no próprio país e em outros Estados da África e da América Latina. Neste ano, recebeu uma nova indicação para o Prêmio Nobel da Paz.
A seguir, os principais trechos da entrevista que Zilda Arns concedeu à Folha, por telefone, de Luanda (capital de Angola).

Folha - Qual é o objetivo de sua visita a Angola?
Zilda Arns -
O principal é atender a um pedido que a conferência episcopal de Angola fez quando nos visitou em outubro do ano passado. Estiveram em Curitiba o presidente da conferência e o bispo de Benguela, d. Oscar Braga. Pediram-me que eu viesse a Angola porque estariam convencidos de que a Pastoral da Criança seria muito adequada nesta fase de reconstrução do país devido ao poder mobilizador comunitário.
Eu estive em Angola em 1996. Cheguei aqui sozinha da última vez, tive reuniões com autoridades e treinei 17 mulheres. Hoje, na mesma diocese [de Benguela", há 507 líderes trabalhando, além das equipes de coordenação. Acompanhamos mais de 5.000 pessoas lá. Em Luanda, temos 196 líderes. Fora isso nós estamos em outras seis dioceses.

Folha - Quantas pessoas da Pastoral da Criança atuam no país?
Arns -
Pelo menos 800 pessoas, e nós não temos muitos dados sobre as dioceses do interior.

Folha - Quantas famílias são acompanhadas?
Arns -
Mais ou menos 4.000 famílias e 6.035 crianças.

Folha - Qual a reação do governo às ações da Pastoral?
Arns -
No Ministério da Educação, por exemplo, nós solicitamos o estudo da possibilidade de termos uma professora em cada paróquia para nos ajudar na coordenação e na capacitação das lideranças. E isso nos foi prometido. Todos gostaram muito do material da Pastoral, mas naturalmente as fotografias e algumas coisas da cultura precisam ser mudadas.

Folha - Vocês têm campanhas de alfabetização no país?
Arns -
A alfabetização é muito importante, mas ela entra depois que são consolidadas na comunidade as ações básicas de saúde. Aqui, 70% das mulheres são analfabetas. Várias líderes da Pastoral da Criança são muito inteligentes, animadas, mas não sabem ler. Naturalmente, pensamos em começar o quanto antes a alfabetização de nossas lideranças.
Em Angola, a taxa de mortalidade infantil é de 400 por mil nascidos vivos, e a metade das nossas crianças morre por malária. Há muito tifo também.

Folha - Há alguma campanha especial contra a malária?
Arns -
O Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] está ajudando a Pastoral da Criança a fazer mosquiteiros. A Pastoral coloca o inseticida e vai levando de casa em casa. Há muito lixo, muita lata, tudo jogado na rua. A Pastoral está limpando, fazendo com a comunidade um mutirão uma vez por semana, limpando não só as casas mas também as praças e as ruas, enterrando o lixo.

Folha - Por que o índice de mortalidade infantil é tão alto?
Arns -
A primeira causa de mortalidade, como lhe falei, é a malária, que tem de ser combatida. Há um alto índice de desnutrição também. Em Luanda, há muita verminose e lixo. A ONU mostrou boa vontade, gostou de nosso sistema de informação. Fazemos a cada três meses o mapa da desnutrição. Aqui tudo está muito deficiente na parte de dados.

Folha - Segundo a ONU, 51% da população está desnutrida...
Arns -
Acredito que seja mais, pelo menos nas comunidades que eu visitei é mais do que isso.

Folha - Há muita verminose?
Arns -
Sim, muita. Nosso pessoal está fazendo cápsulas com ervas para ajudar a combatê-la.

Folha - Há algum convênio com organizações como o Unicef?
Arns -
Não, mas isso vai ser feito. Convocaram uma reunião com ministros e organizações para ver o que cada um pode contribuir para o desenvolvimento da Pastoral da Criança no país. Todos eles têm pressa porque existem milhares de pessoas sem teto, sem casa, sem comida. Há muita doença, muita malária. Na última vez que eu estive aqui, em 1996, peguei malária também. Desta vez vou ver se peguei ou não, mas aqui todo mundo pega malária... Falta saneamento.

Folha - Quais as principais mudanças que a sra. notou entre a última visita, em 1996, e hoje?
Arns -
Eu notei muita mudança. Em Luanda, na última vez, eu vi muitas pessoas com traumatismos, gente aleijada nas calçadas, arrastando-se. Agora não sei para onde é que foram, mas a gente acha bem mais limpa Luanda, se bem que a periferia, onde nós temos a Pastoral, é um horror.

Folha - Por quê?
Arns -
Há muita sujeira, casebres, tanta criança... É impressionante como é que podem viver. Conheço muitas favelas no Brasil, a condição é péssima, mas aqui é a quantidade que assusta. São milhares. Principalmente de barro, fator que ajuda o mosquito.

Folha - A sra. não teve nenhum tipo de problema de segurança?
Arns -
Não, absolutamente nada. Morreu o líder da Unita, acabou a guerra. A liderança era vertical. Acabou a cabeça, acabou tudo. Agora eles querem se unir, e nós temos líderes da Unita também.
Mesmo durante a guerra, a igreja era respeitada, e agora ela foi uma grande intermediária para a paz, com um papel fundamental para fazer com que o povo sossegue, acredite no futuro.

Folha - A sra. acha que vai haver uma reconciliação?
Arns -
Sim, só que o povo tem pressa. Metade das crianças não é que não vai à escola, elas não têm salas de aulas.

Folha - A infra-estrutura do país está arruinada?
Arns -
Realmente, as estradas são muito ruins. Visitamos asilos de crianças órfãs de guerra... Tudo é muito rudimentar, inadequado.

Folha - Como a sra. avalia a ajuda prestada pelo Brasil?
Arns -
As oficinas de educação para o trabalho estão indo bem e estão criando autonomia. O Brasil é amado aqui. Vi muita gente com camiseta de Ronaldinho. No aeroporto, assistimos ao jogo contra a Inglaterra. Quando o Brasil fez o gol, o pessoal pulava de alegria.

Folha - Qual a situação da Aids?
Arns -
Os angolanos estão sendo orientados pelo Ministério de Saúde do Brasil para o controle da Aids, que aumentou muito. O diretor da OMS [Organização Mundial da Saúde] me disse que há cinco anos eram menos de 4% as grávidas com Aids, hoje são mais de 8%. Isso é bastante alarmante.

Folha - A Pastoral está se expandindo na África, não?
Arns -
Sim, em 1996, quando eu vim para Angola, fui ainda a Guiné-Bissau. Visitei seis comunidades muçulmanas com as quais a Pastoral da Criança trabalha.

Folha - E além de Guiné-Bissau?
Arns -
Missionários brasileiros implantaram a Pastoral da Criança em Moçambique. Fora da África, temos Timor Leste, e estamos começando nas Filipinas, além dos países da América Latina

Folha - Qual a impressão mais forte que Angola deixou na sra.?
Arns -
O lado positivo foi a alegria e a esperança do povo, dos líderes comunitários na Pastoral da Criança. Eles cantaram, dançaram e louvaram a Deus pela Pastoral. Isso me comoveu muito porque eram centenas de mulheres que se manifestaram, expressaram assim sua fé, sua esperança em um futuro melhor. Elas dançam e cantam maravilhosamente bem. Os timbres acho que são os melhores do mundo, eu nunca vi corais populares tão lindos. Agora, sob o ponto de vista triste, impressionaram-me muito as crianças desnutridas, tanta verminose, escolas sem cadeiras - as crianças sentam em cima de latas de leite. As crianças brincam segurando as cadeirinhas porque, se deixassem dentro da sala de aula, seriam roubadas.
As crianças todas no pátio correm com as cadeirinhas, e a gente vê que é uma luta pela sobrevivência. Por outro lado, o que me impressionou muito foi ver mães secas e magras, só pele e osso, amamentando filhos secos, também só pele e osso. Vimos hospitais com leitos no chão, cheios de doenças facilmente preveníveis. A malária, primeira causa de morte, é complexa, mas é combatível, tanto que a maior parte do Brasil está livre dela faz muitas décadas.
Por outro lado, a segunda causa de morte é a diarréia, facilmente prevenível com soro caseiro. Já há cantos sobre o soro caseiro para o pessoal saber como preparar. Pegaram muitos cantos do Brasil e transportaram para cá.

Folha - Falta muito ainda, inclusive alimento...
Arns -
Sim, há muita coisa, mas eu sou otimista, acho que, com paz e unindo esforços, a reconstrução do país vai ser bem mais rápida. Estão combatendo as minas para levar o pessoal de volta para suas terras, mas não vai ser fácil, muitos não querem voltar.
Depois, quando a plantação fica madura, os roubos são grandes porque todo mundo quer sobreviver. Mal o feijão amadurece, já roubam. Precisa realmente, muita educação, cidadania, reconstruir o tecido social, que foi rompido. Em cinco anos de guerra, não só matam pessoas mas também desestruturam valores culturais. A igreja é fundamental e é reconhecida por todos os partidos.


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