São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GUERRA NO ORIENTE MÉDIO

Em Chatila, inimigo une palestinos e libaneses

Campo de refugiados perto de Beirute foi palco de um dos mais célebres massacres

Pobreza e discriminação pela sociedade libanesa marcam vida de palestinos que permaneceram no local após o episódio de 1982

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A CHATILA (LÍBANO)

Estas vielas estreitas e insalubres, que poderiam fazer parte do cenário degradado de uma favela brasileira, guardam na memória um dos mais infames episódios da guerra civil libanesa (1975-1990). Crianças jogam futebol alegremente, um vívido comércio de rua fervilha de consumidores em busca de frutas e verduras, e as muitas bandeiras do Brasil lembram a paixão local por nosso futebol.
Tudo isso é insuficiente para desviar do pensamento as cenas que tornaram o campo de refugiados palestino de Chatila, nos subúrbios de Beirute, um símbolo de barbárie que ainda hoje, 24 anos depois, ainda assombra a consciência mundial.
A poucos quilômetros dali, também no sul do Beirute, o novo capítulo de uma guerra que deu a ilusão de ter terminado há 16 anos tem uma de suas páginas mais violentas. Nos bairros xiitas que abrigam o quartel-general do Hizbollah, bombardeados diariamente, Israel tenta decapitar uma organização que surgiu em 1982, mesmo ano do massacre de Sabra e Chatila. De suas casas precárias, refugiados palestinos, ouvem de perto disparos e vibram a cada nova morte israelense nos ataques do Hizbollah.
Nas paredes sujas de Chatila, as imagens do líder do grupo libanês, Hassan Nasrallah, convivem com as de ícones da luta palestina, como Iasser Arafat e Ahmed Yassin, fundador do Hamas. Ambos estão mortos, e a causa que defenderam cada vez mais distante de se transformar na sonhada independência palestina. "Estamos abandonados, mais uma vez", diz o palestino Mounir Maarouf, coordenador do centro de saúde da ONU em Chatila. "Enquanto se mobiliza para achar uma solução para a crise no Líbano, o mundo volta a se esquecer de nós. Mas não há saída: nós somos o centro do conflito."
Maarouf interrompe seu lamento para corrigir um erro comum: apesar de o episódio estar tatuado na memória mundial como o massacre de Sabra e Chatila, só o segundo é um campo de refugiados. Sabra é uma aglomeração habitacional que fica ao lado, cujos habitantes, embora em escala menor, também foram vítimas do banho de sangue.

Sem números
Até hoje não é possível especificar o número exato de mortos no massacre, mas, os relatos apontam entre mil e 3.000. O que se sabe é que entre 16 e 17 de setembro de 1982, milícias falangistas cristãs aliadas de Israel fizeram uma carnificina no local, sem poupar mulheres nem crianças. O britânico Robert Fisk, um dos primeiros jornalistas a chegar ao local, descreveu assim o que viu, em seu clássico livro sobre a guerra civil, "Pity the Nation" (piedade da nação): "Parei de contar os corpos quando o número chegou a cem. Em todo beco havia corpos -mulheres, homens jovens, bebês e avôs- deitados lado a lado, em terrível e indolente profusão, onde eles haviam sido esfaqueados ou metralhados até a morte. Cada corredor através das ruínas produzia mais corpos."
Poucos sobreviventes ficaram em Sabra e Chatila, diz Maarouf. Quem pôde, mudou-se para outro país, onde recebeu direitos que não possuíam no Líbano. Aqui, eles continuam sendo discriminados, odiados, apontados como os principais culpados pela brutal guerra que destruiu o país. "Há alguns dias o governo libanês fez uma convocação desesperada, tentando arregimentar funcionários para seu serviço de limpeza pública, para substituir os estrangeiros que fugiram. Centenas de palestinos se apresentaram, mas nenhum foi aceito. Nem para recolher o lixo nós servimos", diz.
Segundo a UNRWA, a agência de refugiados palestinos da ONU, há 405.425 palestinos registrados no Líbano, espalhados em 13 campos. Em Chatila estão 12.235. São números referentes somente aos refugiados da primeira guerra árabe-israelense, em 1948. Nas duas guerras posteriores, em 1967 e 1973, outros 15 mil chegaram ao país, calcula a diretora de informação da agência, Hoda Elturk.
"Até hoje eles não têm direito algum, continuam com o status de refugiados. O Estado libanês lhes nega o trabalho em 72 profissões", diz Hoda. "Eles vivem num ambiente extremamente hostil. Uma de nossas principais tarefas é conseguir-lhes trabalho. Muitos vivem em casas minúsculas, com até dez pessoas, e têm dificuldade para pagar o aluguel de US$ 100."
A hostilidade é esquecida quando o assunto é o Hizbollah e o ódio a Israel. "Finalmente surgiu alguém para desafiar e atacar Israel", diz Mohamed Hassanein, dono de uma oficina de máquinas de lavar em Chatila, cujos pais foram obrigados a deixar a cidade de Haifa em 1948 -a mesma que, há duas semanas, vem sendo atingida pelos foguetes do Hizbollah. Muitos de seus parentes ainda vivem lá. Mas isso não arrefece seu entusiasmo.
"Fico preocupado com a minha família em Haifa, mas a alegria de ver Israel sendo atacado é maior", diz Mohamed, 29, que não abandona o sonho de "retornar" à pátria em que nunca esteve. "Nem que seja a última coisa que eu faça."
Embora não participem das eleições palestinas, os refugiados de Chatila vivem a mesma dinâmica política de Gaza e Cisjordânia e as mesmas divisões. Todas as facções estão aqui representadas. Uma delas é a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), cujo escritório fica no segundo andar de um prédio decrépito, cujas escadarias esburacadas e mal iluminadas são um convite a um tombo. O chefe da FPLP em Chatila, Suleiman Abdel Hadi, vê um paralelo entre a violência em Gaza e no Líbano.
"Israel diz que vai destruir o Hizbollah e o Hamas, mas só conseguirá paz por pouco tempo", diz ele, que não vê no plano de retirada unilateral israelense dos territórios palestinos idealizado por Ariel Sharon e herdado pelo atual premiê, Ehud Olmert, nem um esboço de solução. "Nenhum gesto unilateral pode garantir uma paz duradoura. Eles podem até ganhar uma batalha. Mas a guerra ainda será longa."


Texto Anterior: Guerra no Oriente Médio: Israel e Líbano discutem o conflito pela internet
Próximo Texto: Entrevista: Grupo vai mudar região, diz professor
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.