São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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GUERRA NO ORIENTE MÉDIO / TESTEMUNHO

"É uma situação de perder ou perder"

Para libanesa cristã, a única solução para o atual conflito é que os radicais dos dois lados se cansem e queiram a paz

KARMA EKMEKJI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Eu me lembro claramente -foi o 11º dia do bombardeio do Líbano. Eu passara dias sem conseguir raciocinar claramente. Talvez isso aconteça porque praticamente não conseguimos dormir. Você não consegue dormir quando fica esperando a chegada de mais uma explosão ou quando é despertada com um telefonema às 2h da manhã. Pego o telefone. Uma voz gravada fala em árabe perfeito: "Pedimos ao povo libanês que não apóie o Hizbollah, esses terroristas que ameaçam o Líbano e a região. Queremos ajudar o povo libanês". E encerra com "o Estado de Israel".
Nossos vizinhos agora encontraram uma maneira ambientalmente amigável de transmitir suas mensagens. Para que desperdiçar milhares de folhetos quando podem penetrar nossas linhas telefônicas e começar a ligar para nossos números pessoais? Mas peço um pouco de cortesia. Não é como se vivêssemos em Hong Kong, pelo amor de Deus, temos o mesmo fuso horário. Por favor, liguem num horário decente.
Me sentei sobre o telhado, ouvindo o barulho ensurdecedor dos aviões F-16, e era tão simples. Havia uma voz só em minha cabeça: "Nos deixem em paz, só isso". Uma semana atrás, eu estava furiosa: "Como o Hizbollah OUSA declarar guerra em nome do povo libanês?". Não poderiam ter escolhido um momento melhor? Eles estragaram o verão, a temporada turística, as férias de libaneses como eu, que trabalhamos ou estudamos fora do país e contamos os dias que faltam para podermos voltar. Quem diabos eles pensam que são? Estamos fartos dessa questão das "armas do Hizbollah"! Desarmem-nos já, não importa a que preço! Nunca concordei com o fato de o Hizbollah ter armas após a retirada israelense em 2000; sempre acreditei que isso prejudicaria qualquer perspectiva de paz na região.
Agora, porém, retrocedi um passo e me dei conta de que, como cidadã libanesa, nunca me senti ameaçada pela presença do Hizbollah no Líbano. Tenho de admitir que a sensação foi estranha, mas, de repente, me vi pensando positivamente sobre o Hizbollah, no contexto desta guerra. Não concordo com sua abordagem ou sua política, mas, quando em toda sua vida você nunca viu uma nação ou um líder árabes enfrentando Israel, e agora você vê uma organização realizando algo com que nenhum líder árabe ousou sonhar no último quarto de século, você não pode deixar de sentir respeito por essa gente.
Israel bombardeou os aeroportos, portos, quase todas as pontes do Líbano, depósitos de combustível, casas, igrejas, mesquitas, escolas, antenas de comunicações, torres de observação da ONU e matou mais de 500 civis. Será que eles pensam que eu realmente poderia aplaudi-los e me voltar contra o Hizbollah, agora? Para mim, é uma situação de perder ou perder, de qualquer maneira! Se Israel "ganhar" esta guerra, e o mundo inteiro aplaudir o desarmamento do Hizbollah, teremos talvez dez ou 15 anos de paz, durante os quais novos Nasrallahs vão nascer a cada minuto e um novo exército de resistência será treinado para combater Israel outra vez. Se o Hizbollah "ganhar" esta guerra, então eles se tornarão a entidade mais poderosa do Líbano.
Em outras palavras, vão mandar no país. Vamos nos tornar uma pseudo-república islâmica e eu embarcarei no próximo avião para fora daqui.
A única maneira de superar esta situação é que ambos os lados se cansem e que os radicais de ambos os lados queiram a paz. Se os moderados de ambos os lados acordarem uma paz, os radicais de ambos os lados já começarão a urdir a próxima batalha. Ambos os lados já deram provas de força suficiente. O Líbano já sofreu o suficiente e Israel foi atacado como nunca antes. Você não acha que já é hora de trocar alguns reféns?


KARMA EKMEKJI , 22, é libanesa cristã e graduou-se em maio pela Universidade Columbia (EUA) com um mestrado em administração pública.
Tradução de CLARA ALLAIN



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