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Futebol de hoje sintetiza globalização
Esporte carrega conflito entre identidade e internacionalização, afirma historiador
DA ENVIADA A LONDRES
Nesta última parte da entrevista, Eric Hobsbawm fala sobre a "falência" do projeto imperialista norte-americano, das
conseqüências nefastas da
guerra ao terrorismo, de Fidel
Castro e Hugo Chávez e até de
esporte. "O futebol sintetiza
muito bem a dialética entre
identidade nacional, globalização e xenofobia dos dias de hoje", afirma.
FOLHA - O sr. diz no livro que uma
chave para entender o que há de diferente no império norte-americano
é que os outros grandes impérios do
passado sabiam que não eram os
únicos, no tempo em que exerceram
o poder, e nenhum ambicionou uma
dominação global. O que essa diferença revela?
HOBSBAWM - Não acho que
exista hoje, como nunca existiu, espaço para um único império no planeta. Mesmo o Império Romano, à sua época, não
era o único e sabia disso. Havia
o persa, o chinês. Brevemente,
no século 19, pode ter parecido
possível, por razões tecnológicas, que parte do mundo respondesse a um país, como foi o
caso do Reino Unido.
Mas a Inglaterra nunca quis
tentar exercer todo esse poder.
A política do Império Britânico
era apenas a de seguir a lógica e
os interesses de sua economia.
Por um breve momento, realmente controlou boa parte do
planeta. Mas tampouco houve
um grande inimigo. Acho que o
mundo continuará a ser plural,
com algumas unidades políticas que serão mais poderosas
que as outras. Mas não haverá
um único império.
FOLHA - Mas o sr. acredita que a supremacia norte-americana esteja
em vias de se dissolver?
HOBSBAWM - A Guerra do Iraque está demonstrando que
exercer influência no mundo
todo não será possível. Ela está
demonstrando que mesmo
uma grande concentração de
poder militar não pode controlar um Estado relativamente
fraco sem certa aprovação ou
consenso deste.
Defendo no livro que o projeto norte-americano está falindo. O que não significa que os
EUA se tornarão um país mais
fraco, ou que estejam em declínio ou colapso. Mesmo que
percam os seus soldados, continuarão sendo uma nação importante, econômica e politicamente.
FOLHA - Mas onde estão os indícios
dessa falência, além do fracasso da
intervenção militar no Iraque?
HOBSBAWM - O império norte-americano não permanecerá,
entre outras razões, por questões internas. A maior parte
dos norte-americanos não quer
saber de imperialismo e sim de
sua economia interna, que tem
mostrado fragilidades. Logo os
projetos de dominação mundial terão de dar lugar a preocupações econômicas. E os outros
países, se não podem conter os
EUA, têm de acreditar que é
possível tentar reeducá-los.
FOLHA - O sr. tem defendido que a
reação à Al Qaeda é mais perigosa
do que os atentados promovidos
pelo grupo. Por quê?
HOBSBAWM - O projeto político
da Al Qaeda é o de recriar a área
do califado muçulmano, da
Pérsia até a Espanha. Isso é algo completamente fora de
questão, uma utopia. O modo
como a Al Qaeda se desenvolveu, em pequenos grupos ativos, é muito mais eficiente do
que o terrorismo de outros
tempos, muito por conta do
elemento do homem-bomba. O
homem-bomba não é apenas
eficaz do ponto de vista objetivo, ele é também mais assustador, porque emocionalmente
as pessoas acham difícil entendê-lo, justificá-lo.
Por outro lado, se olharmos
para o número de pessoas mortas não só pela Al Qaeda mas
por todos os terroristas e homens-bomba até hoje, em termos absolutos, é algo muito pequeno. É um erro achar que a Al
Qaeda é uma ameaça ao mundo. A reação à Al Qaeda, essa
sim, tem sido perigosa.
Não só porque está produzindo uma intervenção militar
massiva em locais em que não
deveria haver nenhuma intervenção militar. Mas também
porque está sendo responsável
pela diminuição do respeito aos
direitos humanos no Ocidente.
É claro que seria ridículo não
levar a Al Qaeda a sério. Mas
bombardear países não é o modo de lidar com esse tipo de
problema. Nunca foi. A questão
deve ser resolvida pelos meios
tradicionais aplicados no passado, contra o IRA (Exército
Republicano Irlandês) e outros
grupos terroristas. Por meio de
estratégias de investigação policial, da infiltração, de ações localizadas. Trata-se de um problema policial, não militar.
FOLHA - Quando conversamos, em
2002, por ocasião do lançamento de
sua biografia, "Tempos Interessantes", o sr. disse que considerava a
América Latina um "fantástico laboratório de transformações históricas". Ainda pensa assim?
HOBSBAWM - Sim, ainda acho
que se trata de um continente
em que é possível acompanhar
desde o momento em que a natureza foi dominada e as pessoas se estabeleceram até a rápida modernização, industrial
e da sociedade, ao mesmo tempo. Algo que em outros lugares
levaria gerações na América
Latina acontece de modo muito acelerado. Visitei o Brasil pela primeira vez há 40 anos. E
hoje observo que o país mudou
dramaticamente.
FOLHA - Para o bem?
HOBSBAWM - Deixando de lado
juízos de valor... O que me impressiona hoje é perceber que
antes eu considerava 40 anos
um tempo muito longo na história, e agora sei que cabe numa
vida humana. Para um historiador, a América Latina, o Brasil,
são lugares onde você pode
acompanhar um processo inteiro. Como foi importante para Darwin em relação à biologia, acontece da mesma forma
para a história.
Mas o que continua sendo
um mistério para mim é por
que, apesar de seu grande potencial, a América Latina tenha
permanecido à margem da história ocidental e aí continua. E
é desse modo, também, que está entrando no século 21.
FOLHA - O sr. não vê perspectivas?
HOBSBAWM - Não para a América Latina como um todo, possivelmente para o Brasil.
FOLHA - O sr. segue otimista com o
governo Lula?
HOBSBAWM - Não tenho acompanhado de forma pontual, mas
no geral o Brasil está melhor. A
economia, o padrão de vida das
pessoas. Em outros aspectos,
segue uma bagunça. É interessante notar que, no que diz respeito às diferenças sociais, o
país não está mais sozinho. O
resto do mundo também ficou
socialmente mais polarizado.
O Brasil tem uma chance hoje de, como a Argentina em certo momento do século 19, desenvolver-se economicamente
muito rápido a partir da exportação de produtos primários.
Há uma crise de produtos naturais no mundo e o Brasil tem
um potencial ilimitado em relação à produção de alimentos.
FOLHA - O que o sr. acha de Hugo
Chávez?
HOBSBAWM - É uma figura simpática, tem senso humor, não é
um intelectual, economista,
teórico, mas se transformou
em mais do que mais um militar latino-americano que tomou o poder. Ele teve sucesso
ao se transformar num símbolo
genuíno de liderança para a
América Latina. Ele continua,
mas supera o que simbolizou
Fidel Castro. E tem muita sorte
de ter tanto petróleo por trás.
FOLHA - E Fidel Castro? O que ficará
da Revolução Cubana?
HOBSBAWM - Cuba já vive a fase
de transição pós-Castro. Castro
será lembrado como uma lenda, uma tocha da emancipação
da América Latina em relação
aos EUA, uma expressão dramatizada de sua aspiração por
independência, um símbolo
antiimperialista. Vai ser lembrado por conquistas sociais
que nenhum outro país latino-americano alcançou. Acho que
não foi suficientemente dito
ainda o quanto melhorou a
qualidade e a expectativa de vida dos cubanos.
Porém, fundamentalmente,
o projeto cubano não pode ser
considerado um sucesso. Economicamente, foi um desastre
até, assim como a tentativa de
revolucionar o resto da América Latina não teve sucesso.
Fidel vai sobreviver como
Che Guevara. Uma imagem,
um símbolo.
FOLHA - No ensaio "Nations and
Nationalism in the New Century"
(nações e nacionalismo no novo século), o sr. lamenta o fato de que as
seleções de futebol nacionais estejam perdendo força para os chamados superclubes internacionais. O sr.
não acha que o nível do esporte, por
conta disso, tenha melhorado?
HOBSBAWM - O futebol sintetiza muito bem a dialética entre
identidade nacional, globalização e xenofobia dos dias de hoje. Os clubes viraram entidades
transnacionais, empreendimentos globais. Mas, paradoxalmente, o que faz o futebol
popular continua sendo, antes
de tudo, a fidelidade local de
um grupo de torcedores para
com uma equipe. E, ainda, o
que faz dos campeonatos mundiais algo interessante é o fato
de que podemos ver países em
competição. Por isso acho que o
futebol carrega o conflito essencial da globalização.
Os clubes querem ter os jogadores em tempo integral, mas
também precisam que eles joguem por suas seleções para legitimá-los como heróis nacionais. Enquanto isso, clubes de
países da África ou da América
Latina vão virando centros de
recrutamento e perdendo o encanto local de seus encontros,
como acontece com os times do
Brasil e da Argentina. É um paradoxo interessante para pensar sobre a globalização.
NA INTERNET - Leia a íntegra da entrevista
www.folha.com.br/072715
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