São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2008

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ARTIGO

Não é o véu, é a democracia

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A Turquia ficou a apenas um voto de viver o que o jornal britânico "Financial Times" havia classificado preventivamente de "golpe judiciário". Eram necessários 7 dos 11 votos do Tribunal Constitucional para tornar ilegal o AK (Partido Justiça e Desenvolvimento), há seis anos no governo, com amplo respaldo eleitoral. Seis juizes votaram pela ilegalização.
A falta de um voto evita uma enorme crise. Mas expõe a natureza real do dilema turco: não se trata do véu islâmico, principal pretexto para que o tribunal decidisse julgar o AK, mas da democracia, permanentemente ameaçada pelos militares, que já intervieram três vezes no funcionamento das instituições, sempre a pretexto de defender a laicidade da República fundada por Kemal Ataturk.
A alegação é a de que o AK tem uma "agenda oculta" para islamizar a Turquia. Se a tivesse de fato, já a teria explicitado, após seis anos no poder. A suposta evidência da "agenda oculta", ou a mais recente, foi a decisão do governo de revogar a proibição do véu em universidades e prédios públicos.
Parece muito mais democrático permitir que cada mulher use ou não o véu, onde e quando quiser, do que proibi-lo. Em nenhum país democrático, um católico, por exemplo, é proibido de usar um crucifixo na aula, no cinema ou no botequim.
Pode-se alegar que o uso do véu é um manifesto político feito de tecido. Pode ser, em alguns casos. Mas uma pesquisa feita pelo Eurobarômetro mostra que a adesão dos turcos a valores que o Ocidente preza -e o islã supostamente despreza- é às vezes superior à média européia (a pesquisa foi feita quando a União Européia tinha 15 membros, e não os atuais 27).
Os turcos ganham da média em "respeito à vida humana" (seis pontos mais), "respeito aos direitos humanos" (nove) e apreço à democracia (quatro).
Como 60% das turcas usam o véu, é difícil atribuir o costume a uma intenção política de afirmar o islã contra a democracia.
A batalha islamismo/laicidade, em parte resolvida ontem pelo Tribunal Constituicional (criação, aliás, de uma ditadura militar), é no fundo parte de um confronto maior pelo poder.
Senem Aydin Düzgit, pós-graduando pela Universidade Livre de Bruxelas, resume o quadro: a divisão tradicional na Turquia se dá entre uma elite burocrática, militar e empresarial, ferozmente a favor do Estado secular, e uma "periferia", ou "forças provinciais com status econômico inferior e que respaldam valores tradicionais" (portanto islâmicos).
É um cenário que vem dos anos 70, mas que mudou a partir da década seguinte: "A urbanização e a migração não só fizeram tais grupos (a "periferia") mais visíveis como os transformaram em fortes competidores pelo poder".
O véu, portanto, é só o pretexto para encobrir uma disputa de poder que o AK está ganhando. Disputa que se resolve sempre melhor na democracia do que com golpes, mesmo que sejam "golpes judiciais".


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