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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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FORÇAS DE PAZ

Missões são "ilhas da fantasia" em meio à violência e à pobreza e despertam inveja e ódio nos países hospedeiros

Burocracia e privilégios minam ação da ONU

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

As Nações Unidas têm oscilado há meio século entre as noções de "manutenção da paz" ("peacekeeping", em inglês) e "imposição da paz" ("peace enforcement"). Mas seja qual for a missão da ONU em determinado país, um problema permanece: as forças multinacionais, civis e militares, são verdadeiros quistos estranhos no país hospedeiro, encraves muitas vezes invejados, amados e detestados ao mesmo tempo.
E isso vale tanto para o Iraque, quanto para Ruanda, Bósnia ou mesmo para Timor Leste -nesse último caso, uma das raras histórias recentes de sucesso de imposição de paz (mas que deve o resultado feliz muito mais à intervenção australiana do que às Nações Unidas).

Ilhas da fantasia
Os "UN compounds", as instalações da ONU, são verdadeiras ilhas da fantasia em meio ao inferno em volta, separados da "barbárie" por cercas de arame farpado e guardas armados.
De um lado da cerca existem fax, e-mail e lojas exclusivas com água mineral francesa, queijos dinamarqueses e uísque escocês. Do outro, gente passando fome e correndo risco de levar tiros ou de pisar em minas.
"Hoje os putos vão se dar bem." A frase foi dita por um ex-militar português, veterano da guerra colonial em Angola, que serviu depois ali trabalhando para a ONU. Os "putos", em português de Portugal, eram as crianças angolanas que se aglomeravam em volta das bases pedindo restos de comida.
O militar luso estava em uma base de uma unidade latino-americana com péssima culinária -o cozinheiro simplesmente jogava os ingredientes num caldeirão parecido com o das bruxas e cozinhava praticamente sem nenhum tempero.
O português simplesmente colocou sua marmita fora do arame farpado ao alcance das crianças. Em frações de segundo não restava um grão de arroz no prato. Os "putos" se deram bem.
Manter a paz significa agir com a concordância dos beligerantes, criando por exemplo uma fronteira vigiada ou uma zona-tampão entre os inimigos -algo muitas vezes definido como "o algodão entre os cristais". Essa é a missão mais tradicional dos "capacetes azuis" da ONU.
Impor a paz significa usar algum grau de força militar para atingir a pacificação, incluindo o risco de combate. As experiências da ONU com imposição de paz foram sempre mais polêmicas -como o caso do Congo na década de 60, em que as tropas da ONU participaram de combates às vezes ferozes.
Mas, mesmo ao gerir a mais simples manutenção da paz, a organização tem falhas graves, pois é altamente burocratizada, gerando comissões, comitês, relatórios e papeladas genéricas a uma velocidade surpreendente.
Um dos motivos é compreensível. A ONU representa a quase totalidade dos Estados do planeta, mas não pode impor regras a eles, pois não é um governo mundial, e sim uma associação de países tidos como iguais.
As qualidades da ONU também acabam elas próprias prejudicando a associação. Quanto mais países integrarem uma missão de paz, maior a sua representatividade política. Mas diminui proporcionalmente a capacidade de ação rápida e de logística mais flexível.
Os custos das missões também têm aumentado. Um estudo revelou que nos últimos 40 anos do século 20 eram gastos em média US$ 75 milhões por ano em missões de paz. Mas na década de 90 os custos foram ao espaço.
Só em 1994 a ONU gastou mais com várias missões de paz do que tudo o que fora gasto de 1948 a 1990 (em 16 missões). A missão pouco frutífera na Somália (1992-93) consumiu mais de US$ 1 bilhão.
Em sua defesa, as Nações Unidas argumentam que esses custos ainda são uma fração pequena do gasto mundial anual com forças armadas -mesmo em um ano movimentado como 1996, as missões de paz usaram o equivalente a 0,2% do gasto total mundial com os militares.
A ONU tornou-se um ideal de emprego tanto para profissionais competentes como para carreiristas interessados em um cabide de emprego internacional.
"A ONU é uma burocracia incompetente gerida por gente do Terceiro Mundo que deseja apenas fugir de seus países com passaporte diplomático", desabafou um conhecedor da organização, que preferiu não ser identificado.
Esse cabidaço de empregos significa ganhar bem em dólares, o que aumenta o fosso entre o pessoal da organização e a população dos países em que atuam. Um resultado é a criação de mercados negros e de prostituição, paradoxalmente dificultando a manutenção ou imposição da ordem. E deixando os locais muito putos -em português do Brasil.


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