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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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EUROPA

País debate despreparo da área de saúde e falta de atenção com os mais velhos, após onda de calor que matou mais de 11 mil

Morte de idosos na França revela descaso

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Entre os mortos pelo intenso calor na França durante as duas primeiras semanas de agosto, 81% tinham mais de 75 anos. É o que indica o levantamento provisório sobre o tamanho da tragédia, divulgado anteontem pelo Ministério da Saúde local. Impossível saber por enquanto quantos dos 11.435 mortos que o governo francês passou a admitir eram idosos de idade inferior aos 75.
O calor já passou. A previsão para hoje, em Paris, está bem mais próxima do outono, com a mínima de 10C e a máxima de 20C.
No auge da canícula, no entanto, a temperatura máxima ultrapassava os 40C, e, por 15 dias, os termômetros registraram, de noite, nunca menos que 23C.
Uma visão menos indignada se concentraria no fato de os franceses não estarem preparados para o calor excessivo. Ar-condicionado doméstico e ventiladores são bem pouco frequentes.
Mas a morte em massa de idosos tem outras dimensões. Em primeiro lugar, há o acúmulo de corpos insepultos ou não reclamados por familiares. Vejamos. Só em Paris foram mais de 1.700 mortos, dos quais 555 não tinham sido ainda enterrados na última quinta-feira. Entre eles, 220 não tinham sido reclamados por familiares nem por amigos.
A maior parte dos franceses sai de férias entre meados de julho e meados de agosto. O que presumivelmente aconteceu no caso dessas vítimas: eram pais ou avós cujos filhos ou netos veraneavam desatenciosos para com seus idosos. Foi tão grande a quantidade de cadáveres insepultos que o Ministério do Interior precisou baixar uma portaria na qual suspendia a determinação segundo a qual o prazo máximo para cremação ou enterro é de dez dias.
Há ainda o lado mórbido do armazenamento de seres humanos num frigorífico reservado a carne congelada em Rungis (Ceagesp parisiense) ou em sete caminhões refrigerados que a polícia precisou requisitar.
"450 mortos esquecidos. Somos todos culpados." A recente manchete do jornal popular "Le Parisien" exagerou na quantidade. Mas acertou no clima psicológico da França no atual verão.
Contrariamente ao que ocorre na Itália, na Espanha ou na Grécia, o idoso francês raramente mora com a família. Não é considerado tecnicamente "isolado" se estiver a menos de meia hora de algum parente ou amigo próximo.
Mas Paris "exporta" seus idosos, diz ao jornal "Le Monde" Jean Kervasdoué, um dos grandes especialistas franceses em gestão do sistema público de saúde. Afastados para subúrbios ou cidades do interior, perdem a constância do vínculo com pessoas conhecidas e se tornam vulneráveis em caso de emergência.
Em resumo: deixou de funcionar a relação de solidariedade com os idosos. O que seria apenas deficiência de afeto familiar acabou se tornando abandono que poderia ter causado a morte.
A catástrofe também afeta a auto-estima do sistema público de saúde francês, avaliado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como o mais eficiente do mundo.
A rede pública dispunha até o ano passado de um mecanismo exemplar de tratamento dos idosos, chamado APA, pelo qual os pacientes eram atendidos em seus domicílios.
A verba do APA foi cortada quase pela metade. O governo está em regime de ajuste fiscal. É uma exigência do Banco Central Europeu, gestor do euro, a moeda comum européia. O APA a pleno vapor poderia ter evitado muitas mortes.
A responsabilidade oficial, segundo consenso na mídia, também se deve à demora com que o Ministério da Saúde reagiu e reconheceu a dimensão do problema. Em 8 de agosto, o ministro da Saúde ainda estava de férias.
Não é fácil avaliar a responsabilidade oficial num país polarizado politicamente como a França. A oposição sempre terá porta-vozes matreiros. A Folha pediu ao setor de estudos de saúde da União Européia um diagnóstico das deficiências na França. O responsável respondeu que deverá esperar que os franceses quantifiquem e expliquem o problema. Ou seja, não quis criticar.
A pirâmide etária francesa tem engrossado na ponta. As pessoas vivem cada vez mais. Um homem chega em média a 75,6 anos, uma mulher, a 82,9. Cada habitante gasta por conta própria ou custa ao Estado em saúde US$ 2.335 por ano, e a saúde representa 9,5% do PIB, segundo o anuário da OMS.
O primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin procura tirar proveito do clima emocional e propor que seu país adote solução semelhante à que existe na Alemanha desde 1994: fundos de auxílio à terceira idade seriam custeados por um dia a mais de trabalho, que empresas e assalariados cumpririam ao suprimir um dos feriados previstos no calendário local.
O que daria 5 bilhões (R$ 15,5 bilhões) para a terceira idade. Uma primeira pesquisa indica que dois terços dos franceses concordam com a solução.


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