São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2008

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Líder das Mães da Praça de Maio leva política à cozinha

Hebe de Bonafini ministra há um mês aulas em que mistura culinária com comentários críticos a adversários dos Kirchner

"Nos alteramos porque a 4ª Frota vem rastrear nossas costas, mas ignoramos quando se metem em nossos estômagos", diz


Cézaro de Luca -31.jan.08/Efe
Hebe de Bonafini lidera as Mães da Praça de Maio em um protesto; nas horas vagas, ela cozinha

ADRIANA KÜCHLER
DE BUENOS AIRES

Sem o glamour de Jamie Oliver, a tradição da maravilhosa Ofélia e a ternura de Dona Benta, uma senhora argentina vem ganhando espaço no mundo das aulas de culinária. O convite para o curso já mostra que sua proposta é diferente.
"Às vezes, nos alteramos porque vem a Quarta Frota dos EUA rastrear nossos rios e costas, mas ignoramos quando se metem em nossas cozinhas, em nossos estômagos, em nossas casas." É assim que Hebe de Bonafini, 80, histórica líder da Associação Mães da Praça de Maio, pretende angariar alunos para o curso "Cozinhando Política", em que começou, há quatro semanas, a promover suas receitas socialistas para expulsar o capitalismo da cozinha, com pratos acessíveis ao bolso.
A aula é filmada como em qualquer programa de culinária, mas o cenário é histórico: a cozinha é improvisada em uma sala de aula da antiga Esma (Escola de Mecânica da Marinha), principal centro de tortura da última ditadura argentina (1976-1983), hoje convertido em museu e espaço cultural.
Com Bonafini, não podia ser diferente. Líder da entidade que reúne mães de militantes políticos desaparecidos durante a ditadura desde 1979, ela teve dois filhos e uma nora desaparecidos no regime militar.
Após anos de oposição a diferentes governos, se tornou uma das principais figuras de apoio da gestão do ex-presidente Néstor Kirchner e da de sua mulher e atual mandatária, Cristina, que tem como bandeira política a punição dos crimes da ditadura.
Ela defende o presidente venezuelano, Hugo Chávez, ataca o americano George W.Bush, e até Lula, admirado na Argentina, é alvo de sua língua ferina. Disse certa vez que o brasileiro fez um "pacto com o diabo". No caldeirão de Hebe de Bonafini, a política sempre mete a colher.
Nas primeiras aulas, teóricas, a "mãe" discutiu as origens do McDonald's e leu um texto do uruguaio Eduardo Galeano que fala da "globalização do hambúrguer, da ditadura da fast food". Na última aula, em que a Folha ocupou um dos bancos, não faltaram críticas ao prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, rival dos Kirchner, e ao setor ruralista, que protagonizou um conflito de quatro meses com o governo de Cristina.
Duas alunas, professoras de escolas públicas, reclamam que a comida servida nos colégios é horrível. "Mas também com o Macri no governo... Só quer saber de encher de gente [as escolas], sem condições. Por isso, ninguém mais vai votar nele", sentencia Bonafini.
O prato do dia é um guisado de cevada perolada, carne e legumes, cozinhado com panelas e utensílios doados pelos alunos. Enquanto prepara a refeição, com avental e sem o típico lenço que caracteriza as mães da praça, a chef reclama do preço dos cereais. "Todos estão muito caros", resmunga.
"É o campo! É o campo!", repetem os alunos, seguidores de Bonafini, que chama os líderes ruralistas de golpistas e os acusa de serem responsáveis pelas desaparições do regime militar.
Entre os alunos está Marcos da Silva, um jardineiro brasileiro que vive há 20 anos na Argentina. E também Daniel Ballester, um jornalista argentino que se exilou no Brasil durante a ditadura e que tinha como principais passatempos em Florianópolis, onde vivia, comer quibe e ler a Folha.
Depois de repartir a comida e saciar o apetite dos cerca de 30 "estudantes", Bonafini quer relaxar. Toma o vinho doado por um aluno, não sem antes criticar. "O que é isso? Vinho de missa?"


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