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Inteligência/Roger Cohen

Os conflitos deflagrados pela memória

CHARLESTON, Carolina do Sul

Na pacífica ilha de Sullivan, de longas praias e varandas refrescadas pela brisa marinha, é difícil imaginar um passado tão sofrido, mas sofrimento foi algo de que a ilha viveu um dia.

A placa perto da praia nos lembra o que aconteceu: "Aqui é a ilha Sullivan, onde os africanos eram trazidos a este país sob condições extremas de escravidão e de degradação humanas. Dezenas de milhares de cativos da África Ocidental chegaram à ilha Sullivan entre 1700 e 1775. Os que permaneceram na comunidade de Charleston e os que estiveram aqui de passagem representam um número importante de afro-americanos que hoje vivem nos Estados Unidos.

Foi pela graça divina, pelo ardente desejo de justiça e a persistente vontade de superar monumentais adversidades que os afro-americanos conquistaram seu lugar no mosaico americano".

Segundo estimativas, cerca de 40% dos africanos escravizados no continente americano entraram na América do Norte pela ilha Sullivan. Os navios negreiros os deixavam nas "casas dos pestilentos" que existiam ao norte da baía de Charleston.

Os que conseguiam resistir à quarentena iam para os mercados de escravos em Charleston, onde eram vendidos e geralmente levados para as plantações de algodão e de arroz.

"Tragam a mim os fatigados, os pobres, as massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade." É o que diz o conhecido soneto de Emma Lazarus, inscrito no pedestal da Estátua da Liberdade que está na ilha da Liberdade, em Nova York. O verso traduz a promessa feita pela América de liberdade e vida nova a milhões de imigrantes que chegaram à ilha Ellis. Mas havia também este lugar, uma espécie de anti-ilha Ellis, a passagem para a escravidão, e não para a liberdade.

A escravidão foi, como disse certa vez Barack Obama, "o pecado original" dos EUA. O que ele chamou de "o legado brutal da escravidão e de Jim Crow [leis segregacionistas]" sobrevive nas formas de humilhação do afro-americano e na raiva que o consome de maneira inexplicável para o branco -é tanta que nem mesmo o primeiro presidente negro dos Estados Unidos consegue extinguir.

Diante da placa na ilha Sullivan, me dei conta de que ela foi colocada ali somente em 1999, dois séculos após os terríveis eventos que ela própria registra. Nunca é fácil para as nações enfrentar os capítulos vergonhosos de suas histórias.

Um Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana será inaugurado no Mall em Washington em 2015 e a pedra fundamental será lançada este ano. A elaborada memorialização do Holocausto nos Estados Unidos levou bem menos tempo.

Os regimes repressivos omitem certos fatos para moldar a história que lhes interessa. Até nas sociedades livres os capítulos obscuros ficam escondidos na vã esperança de que desapareçam. Na falta de memória adequada e do debate aberto, as perguntas rodopiam, como acontece com virulência no Oriente Médio: quem chegou primeiro ao território, quem plantou as milenares oliveiras, quem matou quem primeiro, se a igreja está destruindo a mesquita, sem falar na sinagoga que antecedeu a ambas, e aquela carnificina na encosta poeirenta onde os esqueletos se amontoam jamais foi devidamente vingada nem julgada com justiça.

A primeira vez que me dei conta do poder da memória na deflagração de conflitos foi cobrindo as guerras dos Bálcãs na década de 1990. O terrível massacre na região durante a Segunda Guerra, quando a Iugoslávia se partiu, foi encoberto por Tito, que reuniu novamente o país sob o regime comunista a partir de 1945.

Mas os sérvios, os croatas, os bósnios e outros não se esqueceram dos sangrentos e incontáveis assassinatos. Quando o regime comunista entrou em colapso, as velhas feridas reabriram e o ódio tomou conta da região.

O mais chocante é que os sérvios, que tinham sido massacrados pelos croatas fascistas na Segunda Guerra e se viam como vítimas eternas da história, não se reconheciam como os principais agentes de crimes terríveis e assassinatos em massa na Bósnia entre 1992 e 1995. Sendo vítimas da história, como poderiam ser os perpetradores? Mas eles eram.

A história precisa ser recontada para não ser revivida. Levou muito tempo para que a placa na ilha Sullivan fosse colocada ali. Mas é preciso lembrar que a história é uma luz que ilumina, a menos que seja tão forte a ponto de cegar.

Somos ensinados a lembrar; mas também deveríamos ser ensinados a não nos deixar dominar pela memória. Um pouco de esquecimento pode ajudar a colocar em foco o presente. Como tudo na vida, o segredo é o equilíbrio.

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