São Paulo, segunda-feira, 01 de agosto de 2011

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Na Somália, fome e seca causam êxodo

Por JEFFREY GETTLEMAN
DADAAB, Quênia - A aglomeração começa de madrugada, mais de mil pessoas por dia, exaustas, doentes e famintas, materializando-se do ar do deserto para assumir seus lugares nos portões do maior campo de refugiados do mundo, que fica aqui no norte do Quênia.
Elas fogem de uma das piores secas na Somália em 60 anos, e muitas caminharam durante semanas por uma paisagem caótica, cheia de bandidos e militantes, com pouca comida.
Quando chegam aqui, muitas mal conseguem ficar de pé, falar ou engolir. Algumas mães chegam com os corpos dos bebês enrugados amarrados em suas costas.
Abdio Ali Elmoi segura seu filho, Mustapha, cujos olhos estão embaçados. Ela já perdeu três filhos para a fome ou gaajo. "Eu caminhei o dia e a noite inteiros", ela sussurra. "De onde eu venho, não há comida."
A ONU declarou fome em várias áreas da Somália. A seca é apenas parte da culpa: militantes islâmicos no sul da Somália expulsaram organizações ocidentais de ajuda no ano passado. Somente agora, com quase 3 milhões de somalis em necessidade urgente e mais de 10 milhões em risco em todo o ressecado Chifre da África, os militantes cederam e convidaram grupos de ajuda a voltar. Mas poucos estão chegando por causa das complicações e dos perigos de lidar com um grupo brutal aliado à Al Qaeda.
Os somalis não estão esperando. Dezenas de milhares deles, possivelmente centenas de milhares, estão fugindo para o Quênia e a Etiópia em busca de ajuda. Mas o governo do Quênia diz que está sobrecarregado e tem impedido a ONU de abrir um novo campo de US$ 15 milhões aqui em Dadaab.
Cerca de 380 mil pessoas já vivem nos diversos acampamentos que formam Dadaab (que deveriam conter 90 mil), e os quenianos temem que os somalis continuem vindo para cá e não voltem para sua terra.
"Pessoalmente, eu já fiz o que podia", disse Gerald Otieno Kajwang, o ministro da Imigração do Quênia. "Mas o número dos que chegam é grande demais, e eles ameaçam nossa segurança."
Várias autoridades de ajuda afirmaram que os quenianos estavam simplesmente tentando extrair mais dinheiro de aliados ocidentais antes de ceder. O atraso deixou milhares de refugiados nas bordas de Dadaab, no deserto, muitos com crianças doentes amontoadas sob as árvores.
"É chocante", disse Alexandra Lopoukhine, porta-voz do grupo de ajuda CARE, que trabalha em Dadaab.
O pavilhão pediátrico na seção de Dagahaley é um purgatório com iluminação fluorescente. Dezenas de crianças muito magras estão deitadas em cobertores de lã grossa -as enfermeiras dizem que provavelmente menos da metade vai sobreviver-, com a pele frouxa e os olhos vidrados, as cabeças grandes demais para seus corpos. Muitas têm os tubos de soro presos à lateral da cabeça.
"Colapso vascular", explicou um médico queniano. "Não conseguimos encontrar uma veia em outro lugar."
Isak Abdi Saney, um ex-agricultor, espera a morte. Ele levanta delicadamente a camisa do seu filho de seis meses. Todas as costelas são visíveis abaixo da pele transparente como papel de seda. Cada respiração parece que poderá ser a última. "Não sabemos se ele está morto ou vivo, por isso continuamos olhando", diz Isak, tocando no peito minúsculo do seu filho.
Ele caminhou durante 20 dias desde a Somália para chegar aqui. O que encontrou foi o que muitos outros refugiados descreveram: pilhas de animais mortos, aldeias vazias, pessoas morrendo de fome, uma trilha ininterrupta de corpos desde sua aldeia até o acampamento. "Não restou nada lá", ele disse. Como é tão difícil e perigoso para os forasteiros visitarem áreas controladas pelo grupo militante Shabab, é difícil avaliar a profundidade da seca. Mas, segundo um programa de monitoramento da fome financiado pelos EUA, "no último ano, a parte leste do Chifre da África experimentou temporadas consecutivas de chuva fracas, resultando em um dos anos mais secos desde 1950-51 em muitas áreas pastoris".
Os anos de conflito -e o recente aumento dos preços dos alimentos- esgotaram a capacidade da Somália de suportar. Milhares de pessoas estão deixando áreas rurais relativamente tranquilas para buscar refúgio até em Mogadíscio, a capital da Somália tomada por tiroteios que experimenta um êxodo em massa há anos por causa da luta entre o governo frágil e os militantes islâmicos.
A estrada para Dadaab, que fica a cerca de 80 km da fronteira do Quênia, é perigosa, serpenteando através de um dos ambientes mais impiedosos do mundo. Refugiados foram emboscados, violentados e mortos pelos diversos grupos armados que vagam pelo território. A maioria chega aqui sem um tostão e desmoralizada. Muitos pais dizem que enterraram seus filhos no caminho.
Alguns morrem pouco antes de conseguir ajuda: bem na frente da área de recepção no acampamento, há dezenas de túmulos recém-cavados.


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