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Finlândia planeja banir e 'esquecer' seu lixo nuclear
DENNIS OVERBYE
ENSAIO
Nas palavras do cineasta dinamarquês Michael Madsen, "é um lugar que devemos
lembrar de esquecer".
Em uma ilha a mais de 100 km de Helsinque, na cidade de Eurajoki, engenheiros
finlandeses estão cavando um túnel. Quando estiver pronto, daqui a dez anos,
será uma serpentina com 5 km de extensão e 480 m de profundidade no leito de
gnaisse, rocha que é o alicerce da Finlândia há 1,8 bilhão de anos.
E lá, em uma escuridão que ainda está sendo criada, os bastões de combustível
usados nos reatores nucleares da Finlândia -cheios de elementos radioativos da
tabela periódica com que sonhava Lorde Voldemort, cuspindo nêutrons e raios
gama- serão selados para sempre, ou pelo menos por 100 mil anos.
Esse lugar, Onkalo ("oculto" em finlandês), é o tema de "Into Eternity" (Pela
eternidade), um novo documentário de Madsen.
Onkalo deverá durar 20 vezes mais do que as pirâmides duraram até hoje -tanto
que os construtores do lugar têm de levar em conta a próxima era glacial, quando
o peso de 3 km de gelo sobre a Finlândia será adicionado à tensão sobre os
recipientes de dejetos enterrados, cilindros de cobre com 5 cm de espessura.
Pode parecer loucura, ou mesmo criminoso, obrigar 3.000 futuras gerações de
seres humanos a cuidar de nosso lixo tóxico. Mas já é tarde demais para rejeitar
a era nuclear, e o filme de Madsen chega no momento perfeito para participar de
uma discussão mundial sobre o que fazer com suas cinzas.
No início de junho, juízes de direito administrativo da Comissão Regulatória
Nuclear dos EUA começaram a ouvir argumentos sobre se o Departamento de Energia
pode continuar com o fechamento do sítio na montanha Yucca, em Nevada, onde o
país planeja desde 1987 guardar seu lixo nuclear.
Se o governo Obama vencer, os americanos voltarão ao ponto de partida para
descobrir como se livrar de suas 70 mil toneladas radioativas, incluindo 200
megalitros que restaram do início da era nuclear em tanques com vazamentos no
deserto no Estado de Washington.
Já há de 230 mil a 270 mil toneladas de dejetos de alto nível de radioatividade
no mundo, a maior parte em piscinas no terreno de usinas de energia nuclear onde
os bastões precisam resfriar durante anos antes que possam ser colocados em
recipientes.
Onkalo está sendo construído para fazer seu trabalho sem intervenção ou
manutenção humana. Quando estiver pronto e selado, daqui a cerca de cem anos, o
problema será menos manter a radioatividade lá dentro do que as pessoas fora.
Infelizmente, nada na história sugere que os seres humanos realmente serão
impedidos de entrar.
Na verdade, os próprios construtores, segundo sua declaração de impacto
ambiental, não descartam a possibilidade de que futuros avanços tecnológicos
tornem possível escavar tudo de volta e reprocessá-lo para criar mais material
para combustível ou armas, e nesse caso Onkalo será como um tesouro enterrado.
As pirâmides, afinal, não são um precedente auspicioso. Elas foram saqueadas, e
seus habitantes, dispersos para os museus do mundo por arqueólogos intrépidos e
ladrões de túmulos que não foram detidos pelos rumores da Maldição da Múmia.
Madsen parece concordar. O filme é enquadrado como uma mensagem para o futuro,
para aqueles que possam encontrar esse lugar por acaso.
O próprio Madsen aparece na escuridão, iluminado por um fósforo, apenas pelo
tempo suficiente para falar sobre coisas como a ideia de que estamos encontrando
os últimos remanescentes dos fogos que um dia aqueceram nossa civilização.
Teremos sorte, nesse sentido, se os futuros cidadãos galácticos se lembrarem da
Terra como algo mais que contos de fadas. Estamos sempre lendo sobre cápsulas do
tempo enterradas, mas raramente ouvimos falar que elas foram desenterradas.
Uma das mais famosas descobertas arqueológicas dos tempos modernos, o exército
de cerâmica enterrado com o primeiro imperador chinês, Qin, foi feita por um
agricultor que cavava um poço.
Como espécie, somos bons para esquecer. Por isso, talvez a melhor e definitiva
defesa contra as pessoas fazerem qualquer coisa em Onkalo seria simplesmente
esquecer que existe. A melhor maneira de guardar um segredo é não deixar ninguém
saber que há um segredo.
Mas e o dever ético de advertir as futuras gerações com algum tipo de marcador
que sobreviveria ao soterramento da Finlândia por geleiras e à evolução da
língua? Se de fato os recipientes forem redescobertos daqui a centenas ou
milhares de anos, podemos imaginar a reação de nossos descendentes ao receber
uma surpresa tão incômoda.
É claro que nós mesmos podemos ser surpreendidos, como o camponês que encontrou
o exército de Qin. Uma piada que circundou o projeto de Onkalo durante algum
tempo, segundo o filme de Madsen, poderia ter vindo diretamente de uma novela de
Arthur C. Clarke. E se a primeira coisa que a equipe encontrasse quando
começasse a escavar fossem cilindros deixados por alguém?
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