São Paulo, segunda-feira, 08 de novembro de 2010

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ENSAIO - MICHAEL KIMMELMAN

Melancolia na Casa do Humor

GABROVO, Bulgária - A placa na entrada da cidade continua como eu me lembrava: "Bem-vindo e já vai tarde". Os gabrovenses se orgulham do seu senso de humor. E esta cidade sofrida, mas adorável, já foi considerada a capital comunista do humor.
A principal atração cultural de Gabrovo continua sendo a Casa do Humor e da Sátira, um edifício pesado e sóbrio, do começo da década de 1970. Fotos em preto e branco do dia da inauguração, em 1971, mostram uma sorridente multidão diante do prédio, uma novíssima caixa modernista com uma estátua metálica do Dom Quixote em frente, onde burocratas comunistas vestindo paletós xadrezes saudavam Todor Jivkov, o homem forte do país na época.
"Não há nada de engraçado na foto, mas todos estão rindo." Assim, Galina Boneva, encarregada de mídia da Casa, analisou a imagem recentemente. "Essa é a piada", acrescentou, como se os gabrovenses tivessem fingido ser alegres a fim de serem coletivamente satíricos. Ou talvez Boneva estivesse brincando.
Dizem que o riso é uma linguagem universal. Mas isso deve ser piada. O humor parece ser a mais clara ilustração de uma verdade maior, a de que nem tudo se traduz de uma era ou sociedade para outra.
Os funcionários da Casa do Humor e da Sátira falam em recuperar a popularidade, desde que arrumem dinheiro e um bom plano para isso. Em todo o mundo ex-comunista, museus como esta Casa foram remodelados para funcionarem como atrações irônicas para turistas. O mais engraçado é que a Casa do Humor não é um desses casos. Ela carece de ironia.
É como se fosse um sótão familiar cheio de obras de arte esquisitas, instalações históricas e desenhos satíricos. No passado, o local funcionou como uma encruzilhada da Guerra Fria e uma ferramenta de propaganda. Suas Bienais do Humor eram concebidas para cultivar uma imagem da Bulgária -e por extensão da esfera soviética- como sendo aberta a forasteiros.
A Casa se tornou uma janela entre mundos. Ônibus cheios de turistas do bloco soviético esperavam todas as manhãs pela abertura das portas. Uma enorme equipe publicava sátira e humor, promovia um festival de cinema, encenava peças, trazia redatores de revistas humorísticas como "Punch" e "The National Lampoon" e distribuía prêmios literários para gente como Joseph Heller. A BBC fez um documentário sobre a Casa. A "New Yorker" publicou um perfil da cidade.
Hoje em dia, a Casa sofre para pagar salários ao seu minguado quadro de funcionários.
"Não foi um sucesso da noite para o dia virar a capital do humor na Bulgária", disse Boneva. Ela parou diante de um precário painel que atribui a origem da graça gabrovense a um certo Velho Minyo, um filantropo local do século 19, famoso por ser abstêmio e por carregar os sapatos nas mãos em caminhadas longas para poupar as solas.
Na década de 1970, líderes locais propuseram a criação da Casa do Humor. Tatiana Tsankova, há muito tempo diretora do local, lembra-se que os comunistas viam nisso uma oportunidade ideológica de "mostrar que o humor pode prosperar aqui sob o comunismo, com limites, é claro".
Para artistas abstratos e religiosos na esfera soviética, a Casa era também uma das poucas instituições comunistas que aceitavam exibir e colecionar suas obras. Um crucifixo recebia um título irônico e passava por sátira. Boneva apontou para uma grande escultura de um gato. Uma doação faz o gato cacarejar feito galinha.
Ocorre que eu já visitei a Casa do Humor e da Sátira antes, no começo da década de 1980. Meus pais, comunistas convictos, pararam aqui num dia ensolarado de verão a caminho do Mar Negro. Meu pai gargalhava com o que me parecia ser uma arte sem humor.
O que levei daquilo: que a Casa do Humor exemplificava a política da Guerra Fria e o tipo de sonho equivocado que levava um médico humanitário americano, com pendor científico pela lógica, a rir do que não tinha a menor graça.
Mas a história, como a memória e a eficácia da sátira, muda com a idade e com a perspectiva. Gabrovo parece diferente a um segundo olhar, mais simpática, precisamente por ter sido fossilizada. Num clima político bitolado e polarizado, especialmente para um jovem nova-iorquino metido a besta, o museu poderia parecer um instrumento tosco de propaganda da Guerra Fria. Mas, na realidade mais fraturada de uma era global, ele chega a parecer especial, algo a ser valorizado justamente por suas falhas e por seu anacronismo.
Eu me peguei rindo, exatamente como meu pai fizera. Ri por educação e por um ligeiro constrangimento com a seriedade das exposições. Ri, pois me senti tocado pela devoção de Boneva. E ri, pois o mundo é precioso e melancólico por ser complicado.
Meu pai pode ter tido a mesma reação quando visitou. Ele quis ser bacana ao chegar à Casa do Humor. Ele não estava sendo um bom comunista, apenas um bom homem.


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