São Paulo, segunda-feira, 14 de setembro de 2009

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As epidemias e seus bodes expiatórios

Por DONALD G. McNEIL Jr.

Quem foi o culpado pela Peste Negra? Na Europa medieval, a culpa era atribuída aos judeus com tamanha frequência e brutalidade que é até surpreendente que a doença não tenha sido chamada de Peste Judaica. No auge da pandemia no continente, entre 1348 e 1351, mais de 200 comunidades judaicas foram erradicadas, sendo seus habitantes acusados de difundir a doença ou envenenar poços.
A gripe suína de 2009 não é nem de longe tão virulenta, nem as reações que ela acarreta. Mas, como em outras pandemias da história da humanidade, alguém tem de levar a culpa.
Primeiro, foram os mexicanos. Políticos dos EUA chegaram a propor o fechamento da fronteira com o México. Em maio, um jogador mexicano de futebol cuspiu em um adversário chileno que o teria chamado de “leproso”, e a imprensa chilena o acusou de guerra biológica. Mas, em junho, argentinos apedrejaram ônibus chilenos, dizendo que eles levavam a doença. Quando o número de casos na Argentina disparou, governos europeus aconselharam seus cidadãos a não visitar esse país.
“Quando a doença ataca e os seres humanos sofrem, (…) infelizmente a identificação de um bode expiatório é às vezes inevitável”, disse Liise-Anne Pirofski, chefe do departamento de doenças infecciosas da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova York.
Uma recente exposição chamada “O Tesouro de Erfurt”, no Museu da Universidade Yeshiva, em Manhattan, apresentou uma lembrança oportuna e deprimente desse hábito demasiadamente humano. Uma arca com mais de 600 joias de ouro, inclusive uma magnífica aliança de casamento do século 14, foi achada em escavações no local onde existira um vibrante bairro judeu em Erfurt, na Alemanha. Ela continha também 3.141 moedas de prata, a maioria com retratos reais; o último rei retratado havia morrido em 1350.
Isso, segundo Gabriel Goldstein, diretor-associado de exposições do museu, sugere fortemente que o material foi enterrado em 1349, o ano em que a peste chegou a Erfurt.
“Por que colocar tamanha carteira de investimentos no chão e deixá-la ali por 700 anos?”, perguntou ele. “Havia uma grande revolta contra os judeus de Erfurt —os registros dizem que cem ou mil foram mortos. Aparentemente, quem escondeu isso morreu e nunca mais voltou.”
Martin Blaser, historiador ligado à escola de medicina da Universidade de Nova York, oferece uma intrigante hipótese de por que os judeus se tornaram bodes expiatórios na Peste Negra: eles foram em grande parte poupados, em comparação a outros grupos, porque os grãos eram retirados das suas casas durante o Pessach (Páscoa judaica), desestimulando a entrada dos ratos, que difundiam a doença. O auge da peste foi na primavera, na época do Pessach.
O fato é que as doenças são tão complexas que atribuir culpas é inútil, e simplesmente afastar a culpa pode ser mais eficiente.
Durante a Peste Negra, o papa Clemente 6° baixou um édito dizendo que os judeus não eram culpados. Tampouco a culpa era dos pecados da humanidade —isso teria confortado os Flagelantes, uma seita que era o verdadeiro alvo da bula papal; eles costumavam comandar ataques de multidões aos judeus e à hierarquia corrupta da Igreja. Levaria 500 anos até que a “teoria dos germes” explicasse a doença.
O papa atribuiu a culpa a um alvo que dificilmente revidaria as acusações: a um mau alinhamento entre Marte, Júpiter e Saturno.


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