São Paulo, segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

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ARTE & ESTILO

Scorsese mantém vigor em thriller policial

"Ilha do Medo" evoca "a sensação de um labirinto"

Por TERRENCE RAFFERTY

O soturno thriller policial "Ilha do Medo", de Martin Scorsese, é ambientado em 1954, no auge daquilo que, poucos anos antes, o poeta W.H. Auden tinha descrito como a era da ansiedade. "Talvez eu esteja preso naquele tempo", disse Scorsese recentemente, soando um pouco cansado ao falar de um filme "que começou como trabalho de entretenimento, se bem que eu não sei realmente como fazer isso, acho", disse ele. "Parece que meus trabalhos sempre viram outra coisa."
"'Os Infiltrados' também foi assim", ele acrescentou. Scorsese está com 67 anos, e, por qualquer critério que se analise a questão, seus últimos dez anos de trabalho foram tão satisfatórios quanto poderia esperar um cineasta de sua idade e experiência.
Três anos atrás, "Os Infiltrados" lhe valeu seu primeiro Oscar, após mais de quatro décadas fazendo cinema; ele poderia se dar ao luxo de descansar. Mas, ao que parece, Scorsese segue determinado a fazer o tipo de filme que, como "Ilha do Medo", se tornará "outra coisa".
Baseado em um romance policial de 2003 de Dennis Lehane, "Ilha do Medo" ostenta seu caráter de "outra coisa" com orgulho. É singular e esdrúxulo, tão isolado e enigmático quanto a ilha soturna, envolta em chuva na qual a ação acontece. O protagonista, o policial Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio), é uma alma atormentada. Durante a maior parte do filme, seus problemas emocionais se manifestam como pesadelos -muitos envolvendo sua mulher morta- e enxaquecas.
"Quando li o roteiro, fiquei cativado pelo personagem", contou Scorsese. "Senti muita empatia com ele."
Acompanhado por seu parceiro, Chuck (Mark Ruffalo), Teddy está na ilha Shutter para investigar um desaparecimento. Essa ilha rochosa e árida na enseada de Boston abriga um hospício para dementes criminosos; uma das detentas sumiu, não se sabe como. Ficamos sabendo desde o início que Teddy pode ter outras motivações: o homem que ele acredita que matou sua mulher pode estar encarcerado ali, e ele desconfia das intenções dos psiquiatras da instituição.
O que surpreende em "Ilha do Medo" não é o protagonista problemático, nem a mecânica de filme de detetive que move a trama. É a claustrofobia, a estrutura hermética e fechada que é tão incomum para Scorsese, cujos filmes costumam ser mais expansivos. Como explicou DiCaprio, que atuou nos quatro longas não documentais dirigidos por Scorsese desde 2001, "em 'Gangues de Nova York' e 'O Aviador', há um pouco mais flexibilidade, coisas que podem ser feitas para reformular o personagem. Mas, em roteiros como 'Ilha do Medo', há segmentos interligados demais. Se você tirar uma parte, a história inteira se desmonta".
A maior parte do filme foi rodada em um hospital psiquiátrico abandonado em Massachusetts, que, segundo Scorsese, tinha "um ambiente de armadilha, de labirinto -um labirinto da mente, que é o que eu queria".
Os filmes de Scorsese sempre foram alimentados por energia nervosa e injeções de adrenalina, e é quase impossível imaginá-lo abrindo mão de algum tipo de turbulência emocional, mesmo que precise induzi-la à custa de pura força de vontade. Ou, quem sabe, sejam necessários estimulantes. No caso do cinema de Scorsese, as drogas preferenciais são as memórias de filmes passados.
"Adoro a memória", disse ele. "Sou um conservacionista." Por isso, quando fala de "Ilha do Medo", ele inevitavelmente fala também em filmes que estão em sua memória, como os de Jacques Tourneur, que fez o sombrio noir "Fuga do Passado" (1947).
"Gosto de assistir a 'Fuga do Passado' repetidas vezes", disse ele, "porque nunca sei ao certo onde me situo no filme, não sei o que é começo, meio ou fim".
Essa impressão nervosa de não saber exatamente onde se está, se no começo, meio ou fim, parece ser de importância vital para Scorsese, que nos últimos dez anos tem criado filmes com o vigor de um principiante, fazendo experimentos com gêneros, sons e atores diferentes (tendo DiCaprio como uma constante), numa tentativa valorosa de conservar-se suficientemente desorientado para criar seu tipo próprio de "outra coisa".
Ele encontra uma maneira de se conservar carregado, mesmo que isso envolva fazer um filme tão barroca e implacavelmente interior quanto "Ilha do Medo". Qualquer coisa que funcione. E o que funciona para Martin Scorsese geralmente é alguma forma de mal-estar. Ele pode ou não estar preso nos anos 1950, mas, para ele, o momento atual é sempre, de uma forma ou outra, a era da ansiedade.


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