São Paulo, segunda-feira, 15 de novembro de 2010

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Esposas afegãs recorrem ao fogo

Por ALISSA J. RUBIN

HERAT, Afeganistão - Noiva aos 8 anos e casada aos 12, Farzana decidiu se incendiar quando seu sogro a humilhou dizendo que não tinha coragem de fazer isso. Tinha 17 anos e havia sofrido anos de agressões e abusos de seu marido e sua família.
Desafiada e deprimida, ela foi para o quintal. Entregou sua filha de nove meses para o marido, a fim de que o bebê não visse a mãe queimando. Então, despejou combustível de cozinha sobre si mesma.
"Por sentir tanta tristeza e dor no coração e tanta raiva do meu marido e dos meus sogros, peguei os fósforos e me incendiei", disse.
Até as famílias mais pobres no Afeganistão têm fósforos e combustível para cozinha. A combinação, geralmente, sustenta a vida. Mas também pode servir para uma fuga terrível: da pobreza, de casamentos forçados, do abuso e da tristeza que podem ser o destino das mulheres afegãs.
O hospital daqui é o único centro médico do Afeganistão que trata especificamente vítimas de queimaduras, uma forma de suicídio comum nesta região, em parte porque os instrumentos para cometê-lo são facilmente encontrados. No início de outubro, 75 mulheres chegaram com queimaduras -a maioria autoinfligida, outras feitas para parecer assim. É um aumento de 30% em relação ao ano passado.
Aqui é vergonhoso admitir problemas em casa, e a doença mental, muitas vezes, passa sem ser diagnosticada ou tratada. As opções das mulheres afegãs são extraordinariamente restritas: sua família é seu destino. Há pouca oportunidade de educação, pequena probabilidade de uma mulher escolher com quem se casará.
"Caso você fuja de casa, poderá ser estuprada ou presa e mandada de volta para casa. E o que lhe acontecerá depois disso?", questionou Rachel Reid, uma pesquisadora da Human Rights Watch que acompanha a violência contra as mulheres.
Mas fugitivas devolvidas são, muitas vezes, mortas a tiros ou facadas em "crimes de honra", porque as famílias temem que elas tenham passado um tempo sozinhas com um homem. Mulheres e meninas ainda são apedrejadas até a morte.
"A violência na vida das mulheres afegãs vem de toda parte: de seu pai ou irmão, de seu marido, do sogro, da sogra e da cunhada", disse o doutor Shafiqa Eanin, cirurgião plástico no hospital de queimados, que tem pelo menos dez casos de autoimolação de mulheres a qualquer momento.
Os casos mais sinistros são, na verdade, homicídios disfarçados de suicídios, dizem os médicos, enfermeiras e trabalhadores de direitos humanos.
Poucas mulheres que sobrevivem às queimaduras, sejam autoinfligidas ou praticadas por parentes, mudam suas vidas. Algumas trabalham com advogados que são recomendados pelo hospital e pedem divórcio. A maioria continua vítima da violência.
As estatísticas da ONU indicam que pelo menos 45% das mulheres afegãs se casam antes dos 18 anos; uma grande porcentagem antes dos 16.
Farzana sonhava em ser professora. Mas tinha sido prometida em casamento para o filho da família que estava fornecendo uma esposa para seu irmão, e, quando completou 12 anos, seus sogros insistiram que estava na hora de casar. Seu futuro marido tinha completado 14 anos.
"No dia do casamento, ele me bateu quando acordei e gritou comigo", ela disse. "Ele sempre defendia sua mãe e usava palavrões para mim."
Os espancamentos duraram quatro anos. Então, o irmão de Farzana assumiu uma segunda esposa, um insulto para os contraparentes dela. Seu tratamento piorou. Eles recusaram permitir que ela visse sua mãe, e seu marido a agredia com mais frequência.
"O que me obrigou a colocar fogo em mim mesma foi quando meu sogro disse: 'Você não é capaz de se incendiar'", lembrou.
Mas ela o fez, e, quando as chamas apagaram, 58% do corpo estava queimado. Um parente levou seu corpo em carne viva de carro para o hospital, e seu marido sussurrou: "Se alguém lhe perguntar, você não diga meu nome; não diga que eu tive algo a ver com isso".
Depois de 57 dias no hospital e diversos enxertos de pele, ela está em casa com sua mãe.
A filha de Farzana está sendo criada pela família do seu marido, e mãe e filha não podem se ver. Apesar disso, ela diz que não pode voltar para a casa do marido.
Por que as mulheres se queimam em vez de escolher outra forma de suicídio?
A pobreza é um dos motivos, disse o doutor Jalali. Muitas mulheres erroneamente pensam que a morte será instantânea.
Halima, 20, uma paciente do hospital em agosto, disse que pensou em saltar do telhado, mas temeu que apenas quebrasse a perna. Pensou que "tudo terminaria logo" se incendiando.


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