São Paulo, segunda-feira, 19 de setembro de 2011

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

A luta das mulheres na Líbia

Conselho Nacional rebelde tem 45 membros e apenas uma representante mulher

Por ANNE BARNARD
Trípoli, Líbia
Aisha Gdour, UMA psicóloga escolar, levava balas escondidas na bolsa. Fatima Bredan, uma cabeleireira, cuidava de rebeldes feridos. A advogada familiar Hweida Shibadi ajudou a Otan a encontrar alvos para ataques aéreos. E Arnal Bashir, uma professora de arte, usou um código secreto para encomendar munição: balas de baixo calibre eram chamadas de "alfinetes", as maiores eram "pregos". Uma "garrafa de leite" significava uma Kalashnikov.
Na vitória improvável dos rebeldes líbios contra Muammar Gaddafi, as mulheres fizeram muito mais que enviar seus filhos e maridos para o front.
Elas esconderam combatentes e prepararam suas refeições. Coletaram dinheiro e contataram jornalistas.
Distribuíram armas e em alguns casos as utilizaram. A rebelião de seis meses contra o coronel Gaddafi impeliu as mulheres dessa sociedade tradicional para papéis que elas nunca imaginaram.
E hoje, embora já enfrentem obstáculos para manter sua influência, não querem recuar.
"Talvez eu possa ser a nova presidente ou prefeita", disse Gdour, 44, em uma tarde recente, enquanto saboreava a vitória com outras mulheres de sua célula rebelde. São três mulheres que sob o antigo governo tinham uma instituição de caridade que transformaram em reduto para esconder armas rebeldes.
Mas na nova Líbia que surge as mulheres são até agora quase invisíveis na política. O Conselho Nacional de Transição da Líbia, de 45 membros, inclui apenas uma mulher.
No vizinho Egito, as mulheres têm dificuldade para preservar as conquistas de sua própria revolução. E o coronel Gaddafi talvez tivesse uma visão mais abrangente do comportamento feminino apropriado do que famílias líbias conservadoras.
Mas as mulheres líbias dizem que seu esforço de guerra estabeleceu fatos que não podem mais ser facilmente desfeitos. Mulheres de diferentes níveis sociais estão tramando pequenas células rebeldes de apoio em redes maiores, pensando no que podem fazer agora para ajudar a construir uma Líbia pós-Gaddafi.
Talvez mais importante, elas participaram em números tão grandes que ajudaram a estabelecer a legitimidade da revolução.
"As pessoas sabem o papel que as mulheres tiveram nesta revolução, mesmo que não tenha aparecido na mídia", disse Nabila Abdelrahman Abu Ras, 40, que ajudou a organizar a primeira demonstração de advogados em Trípoli em fevereiro e depois, com uma gravidez avançada, imprimiu panfletos revolucionários que as mulheres atiraram de carros em velocidade. "Mesmo que eles não nos deem nossos direitos, temos o direito de exigi-los."
As mulheres ajudaram a iniciar a revolução líbia. Em 15 de fevereiro, parentes dos prisioneiros mortos na prisão de Abu Salim realizaram um protesto em Benghazi. Advogadas proeminentes uniram-se a elas e em dois dias as forças de Gaddafi atacaram a multidão crescente com metralhadoras.
Poucas revolucionárias viram a si mesmas como combatentes pelos direitos das mulheres. Mas em retrospectiva muitas líbias, educadas o suficiente para sonhar grande, disseram que foram reprimidas pela ditadura e a tradição. Quando a revolução chegou, estavam prontas a agir.
O coronel Gaddafi se considerava um defensor das mulheres. Em seu Livro Verde, dedicou páginas à santidade do aleitamento. Mas muitas líbias consideravam a defesa do coronel superficial. Como a maioria dos cidadãos, as mulheres virtualmente não tinham influência no governo.
Mesmo em Trípoli, onde muitas trabalham, dirigem carros e convivem com homens, a independência feminina era frágil. Bredan, a cabeleireira, perdeu a oportunidade de estudar medicina por zombar do Livro Verde.
Bashir queria construir uma carreira como artista. Mas o patrocinador de sua primeira exposição de desenhos, um chegado ao governo, exigiu sexo. Ela cancelou a exposição e concentrou sua vida em criar os filhos.
"Esqueci tudo o que sonhava", disse Bashir, 40. Ela encontrou outra saída, porém, que se mostrou valiosa durante a revolução. Dirigia uma instituição de caridade com Gdour, a psicóloga de sua escola, e secretamente levantavam US$ 5 mil por mês para famílias pobres.
Em toda a cidade a doutora Rabia Gajun, que elas conheceram durante a revolução, também levantava dinheiro secretamente para construir uma clínica e oferecer atendimento grátis.
Quando seus parentes homens deixaram Trípoli para combater, as mulheres ganharam nova missão. A doutora Gajun conseguiu remédios e uma impressora para os rebeldes. Gdour distribuiu rifles escondidos sob o banco do carro. Outra amiga transportou dinheiro dentro da fralda de seu bebê. Shibadi, a advogada, definia alvos para os bombardeios. "Nunca mais deixaremos alguém nos controlar", disse.


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