São Paulo, segunda-feira, 20 de julho de 2009

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Ensaio

Benedict Carey

Quando a perversidade toma conta do cérebro

A visão indesejada parece surgir das profundezas da mente nos piores momentos —durante uma entrevista de emprego, uma reunião com seu chefe, um primeiro encontro romântico, um jantar. E se eu começasse a brigar e atirasse esses aperitivos? Se zombasse da gagueira do anfitrião? Gritasse um insulto racial?
“Basta essa ideia”, escreveu Edgar Allan Poe em “O Demônio da Perversidade”, ensaio sobre impulsos indesejados. “O impulso converte-se em desejo, o desejo em vontade, a vontade, numa ânsia incontrolável.”
Ele acrescentou: “Não há na natureza paixão mais diabolicamente impaciente como a daquele que, tremendo à beira de um precipício, pensa dessa forma em nele se lançar.” Ou que reflete sobre a pergunta: “Estarei doente?”
Em alguns poucos casos, a resposta pode ser “sim”. Mas a imensa maioria das pessoas raramente ou nunca concretiza tais impulsos, e sua suscetibilidade a fantasias rudes na realidade reflete o funcionamento de um cérebro social de sensibilidade normal, argumenta um artigo publicado recentemente no periódico “Science”.
“Existem perigos ocultos de toda espécie na vida social, em todo lugar onde olhamos; não apenas erros nos vêm à mente, mas os piores erros possíveis, e eles nos vêm à mente com facilidade”, disse o autor do artigo, Daniel M. Wegner, psicólogo em Harvard. “E o fato de a pior coisa possível vir à mente pode, sob algumas circunstâncias, aumentar a probabilidade de ela vir a se realizar.”
A exploração dos impulsos perversos tem uma história fértil, que está presente nos contos de Poe, nas histórias do Marquês de Sade, nos desejos reprimidos de Freud e na observação feita por Darwin de que muitas ações são realizadas “em oposição direta à nossa vontade consciente”. Nos últimos dez anos, psicólogos sociais vêm documentando a frequência desses impulsos.
Num nível fundamental, funcionar socialmente significa dominar nossos impulsos. O cérebro adulto despende tanta energia na inibição quanto na ação, sugerem estudos, e a saúde mental depende de estratégias duradouras empregadas para ignorar ou reprimir pensamentos profundamente perturbadores, como, por exemplo, o de nossa própria morte inevitável. Essas estratégias são programas psicológicos gerais, subconscientes ou semiconscientes que normalmente funcionam no piloto automático.
Os impulsos perversos parecem surgir quando as pessoas se concentram intensamente em evitar erros ou tabus específicos. A teoria é simples: para evitar dizer que um colega é hipócrita, o cérebro precisa antes imaginar justamente isso; a própria presença desse insulto catastrófico vai, por sua vez, aumentar as chances de o cérebro expressá-lo.
“Sabemos que o que está acessível em nossas mentes pode exercer influência sobre o julgamento e o comportamento, só pelo fato de estar ali, boiando na superfície da consciência”, disse o psicólogo Jamie Arndt, da Universidade do Missouri (EUA).
As evidências empíricas dessa influência têm se acumulado nos últimos anos, documenta Wegner no artigo. No laboratório, psicólogos estimularam pessoas a expulsar um pensamento de suas mentes —a ideia de um urso branco, por exemplo—, só para constatar que o pensamento insiste em voltar.
Os mesmos “erros irônicos”, como Wegner os chama, são igualmente fáceis de evocar na vida real. Jogadores de golfe instruídos a, por exemplo, atirar a bola mais longe que o próximo buraco, cometem o erro com mais frequência se estão sob pressão. Fumantes e alcoólatras sabem que o esforço para reprimir o desejo forte por um cigarro ou um drinque pode trazer à mente todas as razões possíveis pelas quais a dependência deve ser quebrada; ao mesmo tempo, porém, o desejo parece ganhar força cada vez maior.
Wegner argumenta que o risco de as pessoas cometerem deslizes depende em parte do nível de tensão sob o qual se encontram. Concentrar-se intensamente em não olhar para uma mancha no rosto de uma pessoa aumenta o risco de você citar a mancha na conversa, sem querer.
“Quando o pior acontece, e você não precisa mais se preocupar em evitar o desastre, há um certo alívio”, disse Wegner. Mas pode ser difícil explicar isso ao anfitrião que você acaba de insultar.


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