São Paulo, segunda-feira, 23 de agosto de 2010

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Paris realiza sonho de cinéfilos

A.O. SCOTT
ENSAIO

"Sempre teremos Paris", diz Rick a Ilsa no final de "Casablanca", e, para os amantes do cinema, isso é verdade. Ao mesmo tempo em que as preferências de gêneros se modificam e que a tecnologia digital confunde nosso senso de localização cinematográfica, Paris é permanente, indispensável, infinitamente fotografável.
É claro que praticamente qualquer cidade pode ficar bonita na tela, desde que vista sob a luz apropriada. Mas Paris é especial. Sua teia singular e densa de ruelas estreitas e largos bulevares revela uma reserva aparentemente ilimitada de perspectivas e estados de espírito. Qualquer efeito, tema ou motivo que se possa contemplar provavelmente terá um endereço parisiense.
É possível reconhecer essas habitações locais mesmo que você nunca tenha estado na cidade. Quando você de fato a visita, frequentemente tem a sensação de estar no meio de um filme.
E, muitas vezes, é no cinema que a cidade parece mais ela mesma. Por mais imponente que seja, o Louvre real ganha vida quando é visto na corrida por suas galerias feita por Arthur, Franz e Odile em "Band of Outsiders", de Jean-Luc Godard.
A cidade faz as vezes de pano de fundo de romances e mistérios de Hollywood, mas pode também ser palco de thrillers de ação e outros entretenimentos. Paris é ao mesmo tempo feita de pedra e infinitamente intercambiável.
Tendo existido desde sempre, ela nunca envelhece, e, assim, pode ser reinventada perpetuamente: pelos magos da Pixar, por exemplo, em "Ratatouille", e por Christopher Nolan, que inseriu digitalmente sua geografia em uma das cenas de "A Origem".
Quentin Tarantino rendeu uma homenagem semelhante a Paris em "Bastardos Inglórios". Sua intrépida heroína judia que combate os nazistas opera um pequeno cinema em um bairro tranquilo.
Paris é, em primeiro lugar, a cidade de onde vem o cinema francês. E o cinema francês compõe uma tradição rica e contínua de glamour e arte.
Mas isso não necessariamente distinguiria a cidade de Roma, Hong Kong ou qualquer outro centro de produção cinematográfica. O mais importante é que Paris é onde filmes de todos os outros lugares operam sua passagem do local ao universal. Los Angeles pode ser o epicentro da indústria do cinema, mas Paris é a capital mundial da cinefilia.
A noção de que o cinema podia ser visto como uma forma legítima de arte pode não ter se originado na França, mas encontrou um lar ali. Desde o final da guerra até a maior parte dos anos 1960, a Cinémathèque Française, administrada por Henri Langlois, funcionou como uma escola livre de história do cinema.
Foi ali, em salas de exibição no Palais de Chaillot, que os jovens críticos da "Cahiers du Cinéma" absorveram filmes de Hollywood e idealizaram a Nouvelle Vague. Foi ali que Godard, François Truffaut e Eric Rohmer adotaram e debateram a obra seminal de Howard Hawkes, Alfred Hitchcock, Nicholas Ray e John Ford, antes de se deslocarem para atrás das câmeras eles próprios.
O cinema americano clássico, como cânone e como ideal artístico, é em grande medida uma invenção francesa que floresceu na Cinémathèque e em cinemas de arte espalhados por Paris.
Falo por experiência própria. Quando eu era adolescente, minha mãe e eu passamos um verão na cidade. Durante o dia, eu passava as manhãs nas aulas de francês e as tardes perambulando livremente. Nos cinemas minúsculos da Place de l'Odéon e do Boulevard St.-Michel, eu assistia a filmes falados em inglês, legendados em francês.
Hoje todos vivemos na presença de uma cinemateca digital. Cada vez mais, filmes antes obscuros tornam-se disponíveis.
"À Beira do Abismo", por exemplo, não perde nada quando é visto em DVD de alta qualidade.
Mas Paris e seus monumentos à cinefilia continuam em seus lugares. Em 2005 a Cinémathèque mudou-se para uma sede nova e reluzente projetada por Frank Gehry no outro lado do Sena. Em uma visita recente, porém, topei com alguns dos lugares que frequentei na juventude, que ainda estavam exibindo os mesmos filmes.
A impressão que tive foi que eram remanescentes de um passado frágil que está ficando para trás, mas também, de modo desafiador, que eram o centro do universo. Coisa que são -e que Paris sempre será- para qualquer pessoa que ame o cinema.


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