São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 2011

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Última gueixa desafia tempo e ondas

Por NORIMITSU ONISHI

KAMAISHI, Japão - Quando o terremoto aconteceu, às 14h56 de 11 de março, a última gueixa de Kamaishi estava em casa, preparando-se para cantar naquela noite em um "ryotei" -uma espécie de restaurante exclusivo- fundado há 117 anos nesta cidade, onde ela começou a trabalhar quando tinha 14 anos de idade, sete décadas atrás.
A gueixa já tinha vestido as meias brancas que usaria com seu quimono e se preparava para arrumar o cabelo em um coque típico. Contratada para entreter um grupo de quatro pessoas que festejavam a transferência de um colega de Kamaishi, ela tinha escolhido a canção exatamente certa para a ocasião, uma canção para preparar o espírito de jovens samurais que partiam para sua primeira batalha.
Mas um tsunami inundou a cidade 35 minutos depois, e a gueixa -Tsuyako Ito, 84 anos- lutou para sobreviver. Ela tinha sobrevivido a três tsunamis anteriores em Kamaishi e, quando menina, ouvira as histórias de sua avó sobre o grande tsunami de 1896.
No primeiro tsunami da vida da gueixa, em 1933, sua mãe a carregou sobre as costas até um lugar de segurança. Desta vez, quando suas pernas não aguentaram mais, um admirador carregou Ito sobre suas costas até um lugar mais alto.
Ito -que planejava aposentar-se em seu 88° aniversário, ocasião que é visto como marco no Japão- sobreviveu ao quarto tsunami de sua vida, "o mais assustador". As ondas carregaram seu shamisen, um instrumento de três cordas, e seu quimono, artigos essenciais para a arte de uma gueixa.
Beldade famosa, Ito dançava e tocava o shamisen, sendo que a maioria das gueixas sabe apenas tocar o shamisen, disse Setsuko Kanazawa, cuja família é proprietária do Saiwairo, o ryotei onde a gueixa se apresenta. Para os preservacionistas culturais desta região, Tsuyako Ito é a guardiã de uma cultura local que estava em processo de desaparecimento.
"Eu adorava dançar", disse Ito. "E eu queria me tornar a gueixa principal de Kamaishi."
Depois de casar-se com o proprietário de um restaurante de sushi, ter uma filha e se divorciar, Ito foi a Tóquio para estudar dança. Na fase em que a economia de Kamaishi começou a crescer, na década de 1950, ela e uma dúzia de outras gueixas eram constantemente procuradas pelos ryotais. Kamaishi é o lugar onde nasceu a indústria siderúrgica do Japão. Com o passar dos anos, os negócios foram diminuindo, e a demanda por gueixas caiu. Mesmo assim, Ito ainda era chamada, ocasionalmente por clientes antigos e, mais recentemente, por clientes novos, fato que reflete a nova ordem econômica do mundo.
No dia 11 de março, enquanto Ito se preparava para se apresentar, o tsunami atingiu Kamaishi e acabou chegando até a casa onde ela e seu sobrinho viviam, longe da costa. Uma parede de sua casa desabou, e a gueixa começou a tentar fugir, lentamente. Foi quando Hiroyuki Maruki, 59, dono de uma loja de saquê e presidente de um grupo dedicado à preservação de uma melodia antiga chamada "Canção do Litoral de Kamaishi", chegou à procura da gueixa. "Ela é a única que sabe cantar essa canção", disse Maruki. Quando Maruki carregou Ito morro acima, ela recordou "ter sentido o calor macio das costas dele".
Tendo sobrevivido a mais um tsunami, a gueixa disse que o que ela lamentou foi não ter podido cantar naquela noite. "Eu tinha ensaiado na noite anterior e, depois de refletir, pensei que essa canção seria apropriada", contou. "No fim, eu não cantei. E é uma canção tão bonita!"


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