São Paulo, segunda-feira, 26 de abril de 2010

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DINHEIRO & NEGÓCIOS

Juros altos assombram clientes do microcrédito

Por NEIL MacFARQUHAR
A ideia de conceder pequenos empréstimos aos pobres sempre agradou em cheio ao mundo da ajuda ao desenvolvimento e foi saudada como a fórmula para melhorar a vida até dos mais miseráveis. O economista Muhammad Yunus, pioneiro da prática ao conceder empréstimos a produtoras de cestos em Bangladesh, ganhou o Nobel da Paz em 2006. A ONU declarou que 2005 seria o ano do microcrédito.
Mas alguns dos seus maiores defensores estão agora chocados com a direção que o setor tomou. Atraídos pela perspectiva de lucros polpudos, muitos bancos e instituições financeiras hoje dominam esse campo, e alguns cobram juros anuais de 100% ou mais.
"Criamos o microcrédito para combater os tubarões dos empréstimos; não criamos o microcrédito para estimular novos tubarões dos empréstimos", disse Yunus recentemente na ONU. "O microcrédito deveria ser visto como uma oportunidade para ajudar as pessoas a sair da pobreza de um modo empresarial, mas não como uma oportunidade para ganhar dinheiro com os pobres."
As taxas de juros variam mundo afora, mas as que mais preocupam tendem a ocorrer em países como Nigéria e México, onde a atual oferta de crédito não atende à demanda de uma grande população por pequenos empréstimos.
"Chamam isso de 'investimento social', mas ninguém tem uma definição de investimento social; ninguém está dizendo, por exemplo, que você precisa ter lucro inferior a 10%", disse Chuck Waterfield, diretor do site Mftransparency.org, que promove a transparência e é financiado por grandes investidores das microfinanças.
Esse setor, com patrimônio superior a US$ 60 bilhões, ultrapassou inquestionavelmente as suas raízes beneficentes. Elisabeth Rhyne, que dirige o Centro para a Inclusão Financeira, disse em depoimento neste ano ao Congresso dos EUA que os bancos e as firmas financeiras atenderam 60% de todos os clientes. ONGs atenderam 35%, e cooperativas de crédito e bancos rurais ficaram com 5%, segundo ela.
O capital privado começou a entrar na arena das microfinanças há cerca de uma década, mas, segundo especialistas, os investidores só reconheceram plenamente o seu potencial em 2007, quando a empresa mexicana Compartamos, que havia começado como uma pequena entidade não lucrativa, obteve US$ 458 milhões com uma oferta pública de ações.
Embora os fundadores da Compartamos tenham prometido reinvestir o dinheiro no desenvolvimento, analistas dizem que os juros altos e os vigorosos lucros da Compartamos, maior instituição de microfinanças do Ocidente, com 1,2 milhões de tomadores ativos, puxam para cima as taxas de juros em todo o México.
Segundo a Bolsa de Informações das Microfinanças, site conhecido como Mix, onde mais de mil empresas de microfinanças do mundo relatam seus números, a Compartamos cobra uma média de quase 82% ao ano em juros e taxas. Os dados são de 2008.
Na Cidade do México, María Vargas contrai empréstimos da Compartamos há 20 anos, para ampliar sua fábrica de camisetas. Ela não sabe ao certo os juros que paga, embora os considere elevados. "A taxa de juros é importante, mas, para ser honesta, a gente fica tão envolvida no trabalho que não tem tempo de ir preencher a papelada em outro lugar", disse ela. Vargas contou que, após vários empréstimos, agora basta um telefonema para que a Compartamos lhe entregue um cheque no dia seguinte.
Às vezes, a questão dos juros causa uma intervenção política. Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega, ultrajado com taxas em torno de 35%, anunciou em 2008 que patrocinaria uma instituição de microcrédito que cobraria juros de 8% a 10%, usando dinheiro venezuelano.
Houve episódios isolados de incêndios em agências de microcrédito, antes que surgisse uma campanha nacional do "não pagaremos", supostamente orquestrada secretamente pelo governo sandinista. Depois que os tribunais pararam de executar pequenos inadimplentes, fazendo as instituições financeiras internacionais hesitarem em trabalhar com a Nicarágua, a campanha evaporou.
Como o México, a Nigéria chama a atenção pelos juros altos. A empresa Lapo (sigla de "Organização Erga Acima da Pobreza", em inglês) tem despertado dúvidas, particularmente por ter sido patrocinada por investidores relevantes, como Deutsche Bank e Fundação Calvert. Principal instituição de microfinanças da Nigéria, a Lapo adota a polêmica prática da "poupança forçada", na qual a empresa retém uma parte do empréstimo. Os defensores dizem que isso ensina os pobres a poupar; críticos afirmam que é uma exploração, já que os tomadores não recebem a quantia integral, mas pagam juros pelo empréstimo inteiro.
A Lapo recolhe essas ditas poupanças dos seus clientes sem autorização legal para tal, segundo um relatório da Planet Rating, empresa parisiense que avalia instituições de microcrédito. "Era sabido de todos que eles não tinham a licença legal", disse Emmanuelle Javoy, diretora da Planet Rating.
Sob pressão, a Lapo anunciou em 2009 que reduziria sua taxa mensal de juros, mas, ao mesmo tempo, notou a Planet Rating, elevou discretamente de 10% para 20% a poupança compulsória. Assim, a taxa efetiva de juros para alguns clientes saltou de 114% para quase 126% ao ano, e a média para todos os clientes da Lapo foi de quase 74% em juros e taxas, segundo o relatório.
Anita Edward, 30, diz ter contraído três empréstimos da Lapo para os seus salões de cabeleireiro em Benin City, na Nigéria. O dinheiro sai mais barato do que em outros microempréstimos, e os bancos comerciais são impossíveis na prática, disse ela, que no entanto critica o fato de a Lapo ter exigido que ela mantivesse numa conta de poupança US$ 100 do seu empréstimo de US$ 666, com prazo de dez meses, enquanto ela pagava juros por toda a quantia. "Para mim, não está ok", disse ela. "Não é justo. Deveriam dar todo o dinheiro."
Os empréstimos da Lapo a ajudaram a ampliar de um para dois salões, mas, quando ela começou, achou que teria mais dinheiro para investir no negócio.
Godwin Ehigiamusoe, diretor-executivo e fundador da Lapo, defendeu as taxas praticadas, dizendo que elas refletem o elevado "custo Nigéria". Por exemplo, segundo ele, cada 1 das mais de 200 agências da empresa precisa de gerador e de combustível para alimentá-lo. A questão prioritária para o setor, segundo analistas, continua sendo quanto dinheiro os investidores deveriam ganhar ao emprestar para os pobres, muitas vezes com taxas de juros ocultas.
"Dá para ganhar dinheiro com as pessoas mais pobres do mundo -isso é ruim, ou é só um negócio?", questionou Chuck Waterfield. "A que altura dizemos que fomos longe demais?"

Colaborou Elizabeth Malkin, na Cidade do México Cupido no local de trabalho


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