São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 2011

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ANÁLISE

Falta vontade política na Somália

Por JEFFREY GETTLEMAN

DOLO, Somália - O mundo está disposto a ver 750 mil somalis morrerem de fome? Os alertas da ONU não poderiam ser mais claros. Um surto de desnutrição induzido por uma severa seca está tomando conta da Somália, e dezenas de milhares de pessoas já morreram. O grupo militante islâmico Al Shabab impede a maioria das agências humanitárias de chegarem às áreas sob seu controle, no sul do país.
Logo as chuvas vão começar, mas, antes que qualquer plantação cresça, as doenças irão brotar. Malária, cólera, febre tifoide e sarampo vão varrer populações imunodeprimidas, matando incontáveis famintos.
De certa forma, tudo isso é um "déjà vu" do que ocorreu na década de 1990. Mas, naquela época, o mundo estava mais disposto a intervir. Mais de 25 mil soldados americanos participaram de uma multibilionária missão especial para rechaçar os pistoleiros durante o tempo necessário para alimentar os famintos.
Em uma reunião de cúpula no Quênia para discutir a situação, o primeiro-ministro etíope, Meles Zenawi, propôs o uso da força para estabelecer corredores humanitários até as áreas controladas pelo Al Shabab. Poucos doadores ocidentais se entusiasmaram. "Não há clima para intervenção", disse um funcionário americano.
Forças militares estrangeiras, dizem analistas, nunca conseguiram resolver os problemas somalis. Esta fome não reflete só a proibição da ajuda alimentar por parte do Al Shabab. Reflete um Estado falido.
Veja o caso de Mogadício, a capital. O Al Shabab se retirou em agosto, deixando o controle para o governo federalde transição. Mas o "controle" governamental não se traduz em uma operação humanitária eficiente. Soldados saquearam caminhões com alimentos e balearam os famintos.
"O roubo, a corrupção e a violência são endêmicos", disse Bronwyn Bruton, uma especialista em democracia e governança. "O problema vai além do Al Shabab, abrangendo qualquer um que tenha uma arma."
E, na Somália, isso é muita gente. Na década de 1990, a ONU pediu às forças americanas que desarmassem os militantes somalis. Mas os EUA optaram por uma missão mais limitada, e então se retiraram apressadamente após a morte de 18 militares.
De acordo com um estudo da entidade Grupo de Políticas para Refugiados, a operação comandada pelos EUA salvou cerca de 110 mil vidas, mas 240 mil outras foram perdidas devido à fome.
O estudo mostra que as mortes pela fome tendem a vir em duas ondas: uma no início da crise, antes da chegada da maior parte da ajuda; a outra quando as chuvas chegam. No atual surto de fome, analistas já se preparam para a possibilidade de centenas de milhares de mortes.
Os organismos estão esgotados por meses de desnutrição e estresse. Muitos somalis, como se vê nas hordas de milhares de mortos-vivos que tropeçam pelos campos de refugiados em Mogadício ou aqui em Dolo, já estão mais para lá do que para cá.
"Uma ou duas pessoas estão sobrevivendo em cada família", disse Lul Mahamoud Ali, mãe de quatro filhos, que recentemente chegou a Dolo vinda de uma aldeia atingida pela fome.
Devido ao ocorrido na década de 1990, o governo americano participou da criação da Rede de Sistemas de Alerta Precoce da Fome, que monitora dados como o volume de chuvas e o preço das cabras e do gado bovino para prever surtos de fome no mundo.
Isso ajudou as entidades humanitárias a pré-posicionarem alimentos na Somália e a se prepararem para uma enxurrada de refugiados, embora aparentemente poucos tenham conseguido prever a gravidade deste recente surto de fome, na Somália.
Outra lição aprendida foi como alimentar as pessoas.
A abordagem na década retrasada foi inundar a Somália de ajuda alimentar, o que fortaleceu as milícias, desencadeou conflitos entre elas e criou uma rede criminosa que lucrou milhões com a venda de grãos saqueados.
Desta vez, o Programa Mundial de Alimentos e outras agências internacionais continuam distribuindo comida, mas mais agências humanitárias estão preferindo distribuir dinheiro ou vale-alimentação.
Recentemente, Chris Smoot, funcionário da entidade de ajuda humanitária World Vision, chegou a Dolo com um grosso talão de vale-refeição.
Entregou-o ao jovem comissário distrital, que se sentou numa cabana de gravetos e revelou ter pouca experiência em lidar com emergências.
Vinte anos após o colapso do governo central, essa é a história em grande parte da Somália. E, diante do limitado interesse do mundo por uma grande intervenção, isso provavelmente não irá mudar tão cedo.

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