São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 2011

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ANÁLISE

Irlanda racha com o Vaticano

Por SARAH LYALL

DUBLIN - Em meio a dificuldades econômicas, a Irlanda atravessa uma profunda transformação, tão rápida quanto revolucionária: está reavaliando seu relacionamento com a Igreja Católica Romana, a instituição que permeou todos os aspectos da vida aqui durante gerações.
Este é um país onde o aborto é contra a lei, onde o divórcio se tornou legal em 1995, onde a igreja dirige mais de 90% das escolas primárias e 87% da população se identificam como católica.
Mas a admiração, o respeito e o temor que o Vaticano já impôs deram lugar a algo novo -raiva, decepção e desafio- depois de virem à tona uma série de terríveis revelações sobre décadas de abusos de crianças confiadas aos cuidados da igreja.
Talvez em nenhum lugar essas revelações tenham abalado uma sociedade como na Irlanda. Por isso, quando o primeiro-ministro Enda Kenny, normalmente moderado, ocupou inesperadamente o púlpito no Parlamento neste verão para criticar a igreja, manifestava não apenas seus próprios sentimentos, mas os da nação.
Seus comentários foram uma declaração da supremacia do Estado sobre a igreja, com palavras de indignação que nunca tinham sido usadas em público antes por um líder irlandês.
"Pela primeira vez na Irlanda um relato de abuso sexual infantil expôs uma tentativa da Santa Sé de frustrar um inquérito em uma república soberana e democrática apenas três anos atrás, e não três décadas", disse Kenny, referindo-se ao relatório Cloyne.
O documento detalhou abusos e atos encobertos por autoridades da igreja no sul da Irlanda durante o ano de 2009. Quando foi divulgado pela mídia, virou um escândalo de ampla proporção e alvo de muitas críticas públicas e debates, no país.
Reiterando a alegação do relatório de que a igreja havia incentivado bispos a ignorar as diretrizes de proteção das crianças que os próprios bispos tinham adotado, o primeiro-ministro atacou "a disfunção, a desconexão, o elitismo" que segundo ele "dominam a cultura do Vaticano".
Em vez de ouvir com humildade a evidência chocante de "humilhação e traição", ele disse, "a resposta do Vaticano foi analisá-la com o olhar de coruja de um advogado de cânone."
A resposta foi instantânea: o Vaticano retirou seu embaixador em Dublim. A posição do embaixador irlandês no Vaticano também está vaga e fala-se em fundi-la com a embaixada na Itália.
A última comunicação formal da igreja com Dublim -24 páginas de uma prosa densa de argumentos- referiu-se tanto ao relatório Cloyne quanto aos comentários de Kenny, dizendo que um documento crucial havia sido "mal interpretado" pelo inquérito e chamando de "insubstancial" a afirmação de Kenny de que o Vaticano tentara "frustrar um inquérito" no escândalo de abuso.
Simpatizantes com a posição da igreja dizem que o Vaticano defendeu pontos válidos e bem explicados. Eles dizem que Kenny foi longe demais.
Mas o novo tom hostil de seu governo encontrou ampla aprovação em um lugar que se sente duplamente traído.
Primeiro pelo abuso e, segundo, pelo que muitos consideram um encobrimento da igreja, agravado pela linguagem jurídica muitas vezes opaca com que a instituição se defende.
"Você pode falar sobre a fineza dos laços e manobras diplomáticos, mas o que Kenny estava realmente dizendo é que você precisa dar prioridade às vítimas de abuso, e precisa afirmar muito alto que esta é uma república e a lei civil deve ter precedência sobre a lei canônica", disse Diarmaid Ferriter, professor de história moderna da Irlanda no University College em Dublin.
O governo anunciou que vai adotar um pacote de novas leis para proteger as crianças de qualquer tipo de abusos e negligência, por adultos.
Eamon Gilmore, o vice-primeiro-ministro da Irlanda, disse que o país havia afirmado seu papel como "democracia moderna".
Quando se trata de proteger crianças, disse ele, "todo mundo no Estado -independentemente de serem cidadãos comuns fazendo trabalho cotidiano ou de serem um padre ou um bispo- tem de acatar a lei".

Colaborou Douglas Dalby


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